Notibras

Por conta de elogio que recebeu do Eduardo Martínez, Cadu Matos quase borra as calças

Terra de surucucu, onça e lobisomem, Campos dos Goytacazes. E eu, niteroiense de quatro costados, tive de ir à província para encarar uma besta-fera mais temível que essas, o coronel Ponciano de Azeredo Furtado, protagonista do imortal romance O coronel e o lobisomem, de José Cândido de Carvalho. Tudo culpa do Eduardo Martínez.

Sucedeu que o escritor-mor do Notibras jurou por todos os santos que eu era o maior expoente do realismo mágico nas letras brasileiras. Pavão literário, abri a cauda de puro prazer; mas quando ele declarou que eu era tão bom quanto Zé Cândido e o superava graças ao grande número de meus textos, refuguei, apresentei agravos, declarei-me tiete do Zé, condição partilhada pelo príncipe das letras notibrenses. E a vida seguiu.

Mas não resisti, peguei meu velho exemplar do romance, e o reli. (Re)encantei-me com as brincadeiras linguísticas do autor, com personagens como o capitão Vermelhinho, um galinho valente – grande xodó de Ponciano, que sempre o cumprimentava dizendo “Como vai sua pessoinha?’ –, pela lubricidade do coronel diante das partes altas e baixas das donzelas e senhoras, separadas por uma cinturinha de pilão, por sua senvergonhice militante com as mulheres dos cabarés e das casas mais simples de vucovuco… Tanta coisa gostosa de acompanhar…

Fui dormir antes de terminar a leitura. E, de repente, estava numa fazendona nos arredores de Campos. Nesse momento, vi se aproximar um homenzarrão de quase 2 metros de altura, com uma barba maior que a minha. Eu o reconheci no ato: Ponciano de Azeredo Furtado, coronel da Guarda Nacional.

Olhou-me com desprezo, de cima – sou baixinho, menos de 1m65 – e trovejou:

– Como vai sua pessoinha?

Captei a indireta à minha parca altitude, fingi não ter percebido, sorri amarelo e respondi:

– Vou bem, como Deus é servido, graças à proteção da Virgem Maria e dos santos. E o senhor, coronel?

(Ponciano era católico, o catolicismo dominava o Brasil em 1964, quando o romance foi lançado. Sou agnóstico, vá lá, ateu, mas declarar isso era a senha para levar umas porradas no meio dos cornos.)

O coronel não respondeu a meu cumprimento. Fuzilou-me com o olhar e trovejou:

– Soube que o senhor está se dizendo melhor romancista que meu criador, o grande José Cândido de Carvalho.

– Calúnia da grossa, coronel! Não sou romancista, só escrevo contos, e sou um profundo admirador de José Cândido! (Não me declarei tiete dele, Ponciano não conhecia o termo.)

– Humpf – meio que rosnou. – E, que mal lhe pergunte, o que vem fazer aqui?

– Vim conhecer as belezas de Campos dos Goytacazes, e em especial as terras férteis do coronel Ponciano de Azeredo Furtado, com quem tenho a honra de prosear.

Aquilo o amoleceu. Deu um meio sorriso e declarou que por pouco não o encontrava, estava indo para Campos e talvez entrasse no comércio de açúcar. Eu, tendo lido o que aconteceria, não o preveni de que não ia dar certo, vai que a intervenção de um leitor, ainda que em sonho ou numa dimensão paralela, desfazia a magnífica trama urdida por José Cândido de Carvalho. Louvei suas peripécias, a surra no ferrabrás do circo, a caçada da onça, a captura do lobisomem, ele gostou de eu saber tanta coisa sobre sua pessoa. Ficamos assim, jogando conversa fora, até que senti, não sei como, que seria levado de volta. Despedi-me:

– Bom, tenho de voltar, coronel. Por favor, apresente meus cumprimentos à pessoinha do capitão Vermelhinho Pé de Pilão. A meu ver, seu carinho pelo galinho valente, campeão das rinhas, é um dos pontos altos do romance.

Essas palavras o conquistaram. Deu-me um abraço de urso. Depois que consegui desvencilhar-me, me vi de volta no meu apartamento, em São Paulo.

Antes de dormir, ou voltar a dormir, ainda pensei:

“Ufa, dessa vez escapei. Mas foi por pouco, Eduardo Martínez”.

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