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Por trás de Maria Madalena tem segredos, como caroço em angu

Entre os Evangelhos apócrifos – aqueles rejeitados pelas autoridades da Igreja católica, impedidos de figurar ao lado dos de Lucas, Marcos, Mateus e João –, talvez o mais perturbador seja o Evangelho de Maria Madalena. Aliás, a própria figura da primeira pessoa a ver Jesus ressuscitado é controvertida. Alguns veem nela uma ex-prostituta redimida por Ele: outros, a única mulher entre os apóstolos, a mais amada pelo Mestre e, mesmo, a companheira de Jesus na vida terrena.

Melhor não entrar em tal seara, nesse angu tem caroço.

Na atualidade, o Evangelho de Maria Madalena está acessível a qualquer botucudo pela internet (foi assim, diga-se, que o encontrei). Mas antes não era assim. A divulgação era feita laboriosamente, analogicamente, por meio dos anjibinhos.

Ignoro seu nome hebraico e, muito menos, em celestianês ou infernês.

Chamei-os assim por parecerem criaturas híbridas, mescla de anjinhos e diabinhos – que são, na verdade, seres pertencentes à mesma espécie.

Rechonchudos, de asas emplumadas, iguais às dos anjos que adornam igrejas barrocas, mas com chifrinhos. Ao que parece, foram criados tão somente para divulgar o Evangelho de Maria Madalena. Criados por quem?, perguntarão vocês. Repito, melhor não entrar em tal seara, nesse angu tem caroço.

A missão dos anjibinhos obedecia a normas estritas. Era preciso selecionar cuidadosamente aquele que receberia em sonho a mensagem.

Depois, levá-la até ele, quando estivesse profundamente adormecido. Foi assim que um par deles (um mais angelical e outro, mais demoníaco) procurou, em meados do século XIX, um naturalista inglês profundamente religioso, atormentado pela direção em que suas pesquisas de campo o encaminhavam, e deixou cravadas em sua mente as seguintes palavras atribuídas a Jesus, no texto apócrifo: “Todas as espécies, todas as formações, todas as criaturas estão unidas, elas dependem umas das outras […]”. Talvez sob o impacto dessa revelação, o naturalista, Charles Darwin, conseguiu superar seus escrúpulos religiosos e publicou, em 1859, sua obra-prima, A Origem das Espécies.

Desde essa época, anjibinhos sem conta têm visitado em sonhos ambientalistas e médicos heterodoxos de todos os matizes, levando-lhes essas palavras e acrescentando outras: “Por isso adoeceis e morreis […].

A matéria produziu uma paixão sem igual, que se originou de algo contrário à Natureza Divina. A partir daí, todo o corpo se desequilibra. Essa é a razão por que vos digo: ‘tende coragem, e se estiverdes desanimados, procurais força das diferentes manifestações da natureza’”.

Uma das mais polêmicas afirmações do texto apócrifo diz respeito ao pecado. Segundo o manuscrito, o apóstolo Pedro teria perguntado a Jesus:

” Já que nos explicaste tudo, dize-nos isso também: o que é o pecado do mundo?” Jesus disse: “Não há pecado; sois vós que os criais […]”.

Maravilhados, os anjibinhos trataram de divulgar urbi et orbi a boa nova (evangelho, do grego euangellion, significa justamente “boa notícia”).

Um deles, certamente mais demoníaco pouquinha coisa que seu parça de missão, revelou-a nos sonhos do ocultista britânico Alesteir Crowwley (1875-1947), que a difundiu sob uma nova roupagem: “Faze o que tu queres, pois é tudo da Lei”. Décadas depois, outro par a levou ao compositor tupiniquim Chico Buarque de Holanda, que arregou diante da afirmação categórica e a limitou geograficamente: “não existe pecado do lado de baixo do Equador”. Pois é, quem diria, um clássico da MPB incorpora uma contribuição anjinínica…

Para os religiosos bem-pensantes, a passagem mais perturbadora do evangelho apócrifo diz respeito à igreja instituída. Transcrevo, por sua importância, a passagem inteira: “A Paz esteja convosco. Recebei minha paz. Tomai cuidado para ninguém vos afaste do caminho, dizendo: ‘Por aqui’ ou ‘Por lá’, Pois o Filho do Homem está dentro de vós. Segui-o.

Quem o procurar, o encontrará. Prossegui agora, então, pregai o Evangelho do Reino. Não estabeleçais outras regras, além das que vos mostrei, e não instituais como legislador, senão sereis cerceados por elas.”

Essas palavras contestadoras foram transmitidas a todos os teólogos, a todos os reformadores religiosos. Alguns preferiram esquecê-las, vendo nelas restos heréticos de um sonho mau. Mas subsistiram, estão cada vez mais presentes em nossos dias.
Deus está dentro de cada um de nós – é nisso que acredita esse contista agnóstico, ateu nas horas vagas. A outra crença é no “Amai-vos uns aos outros” e sua variante, “amai-vos uns sobre os outros”, de ladinho, de conchinha, como queiram.

Que os anjibinhos tragam bons sonhos a todos vocês.

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