Nós aprendemos cedo que a dor não é apenas uma experiência íntima. A dor é um fenômeno social. Ela circula, se distribui de forma desigual, escolhe corpos, territórios, gêneros, classes. Ainda assim, o mundo insiste em tratá-la como se fosse sempre um problema individual, quase um defeito de caráter: “não suportou”, “não foi forte”, “não soube lidar”.
Nós observamos como quem faz etnografia do cotidiano que o momento exato em que a dor do outro deixa de nos atravessar não é neutro. Não é distração. Não é apenas cansaço. É um deslocamento moral. Quando a dor deixa de atravessar, algo se fecha. E o que se fecha não é o coração no sentido romântico, mas a própria capacidade de reconhecer humanidade fora de nós.
Nós percebemos que a indiferença não nasce grande. Ela se treina. Começa pequena: um olhar que desvia, uma notícia que se ignora, uma frase como “não é problema nosso”. Depois vira método. Depois vira política. Depois vira estrutura. O mundo funciona assim: normalizando dores até que elas deixem de incomodar quem não sangra.
Nós sabemos que não sentir tudo o tempo todo é impossível. Mas existe uma diferença brutal entre não suportar a intensidade da dor alheia e escolher não a ver. A primeira ainda é humana. A segunda é cumplicidade.
Com o tempo, nós entendemos que a injustiça raramente se sustenta sozinha. Ela precisa de plateia passiva, de testemunhas silenciosas, de pessoas que dizem “não concordamos”, mas seguem suas rotinas como se o sofrimento fosse apenas ruído de fundo. A injustiça se alimenta menos de quem a pratica diretamente e mais de quem aprendeu a conviver com ela sem se perturbar.
Nós também percebemos algo incômodo: quanto mais confortável a posição social, maior o esforço para transformar empatia em discurso abstrato. Fala-se de dor em termos genéricos, de violência como estatística, de miséria como conceito. A dor concreta, aquela que tem nome, corpo e história, passa a ser inconveniente.
Nós sabemos, com a precisão de quem já adoeceu tentando sustentar tudo sozinha, que toda vez que a dor do outro não nos atravessa, algo adoece também em nós. A anestesia emocional cobra seu preço. Primeiro vem o cinismo. Depois, a crueldade disfarçada de racionalidade. Por fim, a convicção perigosa de que algumas vidas importam menos.
Nós não escrevemos isso para acusar. Escrevemos para lembrar. Lembrar que a humanidade não se mede por grandes gestos heroicos, mas por pequenas recusas diárias à indiferença. Que não precisamos salvar o mundo, mas precisamos não nos acostumar com a injustiça. Que sentir a dor do outro não significa nos afogar nela, mas reconhecer que ela existe e que atravessa estruturas muito maiores do que indivíduos isolados.
E se quem lê está cansada, exausta, sem forças para sentir tudo, nós entendemos. Houve um tempo em que sentir demais quase nos destruiu. Mas aprendemos que existe uma diferença essencial entre descansar da dor e nos tornarmos indiferentes a ela. Descansar é humano. Endurecer, não.
No fim, nós acreditamos que preservar a capacidade de sermos atravessadas pela dor alheia é uma forma silenciosa de resistência. É assim que impedimos que o mundo nos transforme em cúmplices. É assim que, mesmo feridas, seguimos humanas. Seguimos vivas. Seguimos adiante.
E, sim, a vida continua.
Nós superamos.
E agradecemos inclusive aos homens que atravessamos e usamos como degraus, muletas, espelhos ou despedidas porque até o que não ficou serviu para nos devolver a nós mesmas.
