Davi já estava de saco cheio de inventar desculpas e se esquivar de seus amigos.
— Já falei pra vocês, lá em casa não dá.
Introspectivo desde criança, Davi tinha poucos e bons amigos. Juntos, compartilhavam histórias e vivências engraçadas que ficarão sempre guardadas em suas lembranças de adolescentes. Apesar da boa relação entre eles, havia uma parte de sua vida que o jovem ocultava: a casa onde morava.
Sua casa era o espelho da dona, sua mãe. Com comportamentos de acumular tudo o que lhe apetecesse, ela vivia esse comportamento por anos. Na casa de Davi eram pilhas de papéis, roupas emboladas em partes do quarto, a mesa da cozinha tomada de objetos, até nos corredores tinham sacolas e caixas. Tudo se acumulava, o que para piorar, dificultava a limpeza.
Davi não lembrava de receber visitas em casa, fora as pessoas da família. Seus amigos, que sempre se encontravam semanalmente, alternando seus lares para encontros, nunca eram convidados. Davi sentia taquicardia ao pensar que abrir as portas de sua casa poderia vir a ser motivo de zoação e chacota. Esse pensamento lhe afligia, não queria perder o respeito de seus amigos. Para ele, sua casa era uma mancha em sua reputação.
Em uma terça-feira nublada, Davi chegou de sua sessão de terapia.
— Laura, essa semana aquele meu amigo, que gosta de cozinhar, nos chamou para passar uma tarde na casa dele. Fez hambúrguer com cheddar num pão gostosão. Comemos e ficamos jogando a tarde toda.
— Que amigo prendado esse hein, Davi! E vocês? Ajudaram ele na cozinha ou só comeram?
— Ajudamos, cada um fez um pouco! Depois do lanche, queríamos ajudar na limpeza, mas o pai dele chegou do trabalho e falou para deixarmos lá, que ele cuidava de tudo.
Sabe, Laura… eles, de vez em quando, me cobram que nunca os levo na minha casa… já falei que lá é bagunçado, eles falam que não ligam… Só que eles não têm noção de como que é.
— Quando você começou a ver que sua casa não era adequada como as outras?
— Lembro bem, eu tinha 13 anos. Teve um trabalho em dupla e fui à casa de um colega. A casa dele era bem simples, bem menor que a minha, mas a primeira coisa que percebi era que estava super limpa, organizada… tinha as coisas necessárias de uma casa, sem aquela muvuca de coisas que é na minha. Uma casa muito menor que pareceu o dobro da minha. Precisei ver uma casa normal, mais humilde até, para ver que a minha era um lixo. Para piorar, a mãe dele me tratou com tanto carinho, serviu bolo, suco e café no lanche da tarde. Naquele momento, aquele lanche simples me pareceu o mais saboroso do mundo. Acho que naquele dia tive um choque de realidade, saí de lá me sentindo um merda.
Laura fez menção de falar, mas achou melhor deixar Davi continuar:
— Você sabe, já tentei conversar com minha mãe… daquela vez que segui sua sugestão de começar devagar a arrumar algumas coisas, ela ficou agressiva comigo. Não tenho o que fazer, ela não entende, ou não liga para o que isso significa para mim. Durmo no quarto dela porque minha cama está entulhada de coisas. Quando eu quiser ter uma namorada, como é que vai ser? Como vou levar a menina num lugar assim? Vou morrer de vergonha.
Laura interveio suavemente:
— Olha, Davi, ninguém é perfeito. Sua casa e toda a bagunça que há, é um pedaço da sua vida, sempre será uma parte da sua história. Nossas experiências, por mais amargas que sejam, ensinam alguma coisa. Esse lugar não será sua casa para sempre. É uma situação difícil, mas não será eternamente assim. Você tem bons amigos, e quando tiver uma namorada, poderá explicar a ela a situação. Com jeito, sem expor demais sua mãe. Quem gostar de você de verdade, não usará a sua dor e as suas fraquezas para zombar de você. E se fizerem, fuja. Pessoas assim não são para se ter por perto.
Davi saiu de sua terapia sentindo-se um pouquinho mais aliviado. Imaginar que sua casa era um capítulo de sua história, e não a história inteira, fazia a sombra de seu coração perder a força.
A caminho de casa, Davi decidiu que poderia fazer alguma coisa sim. Pouco é melhor que nada. Seu quarto. Ali, em seu espaço teria melhores condições de cuidar, era território dele. Refletiu que, de alguma maneira, ele se acomodou e não cuidou do que podia. Devagar e sempre, a limpeza e descartes não seriam somente em seu espaço físico, mas também nas aflições que seu coração carregava.
Quem sabe, em algum momento próximo, ele permita que alguém conheça não apenas sua casa, mas também se dê a chance de mostrar-se como é.
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Fabiana Saka (@fabianasaka), escritora e psicóloga clínica no Rio de Janeiro, é autora de “As Aventuras de Daniel – não tenha medo de si mesmo” (Ed. Ases da Literatura, 2024).
