Notibras

Quatro é bom, cinco é demais, dois é a conta exata

Aparício, um tanto extenuado pelo duplo périplo amoroso, explicava-se como podia à amada.. Dizia que os preços dos aluguéis estavam muito altos, que ainda não tinha conseguido encontrar nada digno da amada ou que ainda estava matutando sobre qual negócio montar e, por isso, ainda não tivera tempo para procurar uma casa.

Entrementes, Gaspar, também cliente da casa da luz vermelha número cinco, acabou por tomar conhecimento do affair entre Aparício e Deusidete, da qual já fora cliente preferencial antes da surpreendente postura de castidade adotada pela moça. Conversando com as colegas de Deusidete, ele finalmente ficou sabendo sobre o caso romântico da estrela número um da casa com o galante capitão, elo sentimental nascido de uma noite fugidia de amor.

O gerente, então, não teve dúvidas, foi imediatamente levar a informação para Maitê e para o pai dela. Achava que assim poderia voltar a ter uma chance com a rica herdeira.

Todavia, para a sua decepção, os dois não viram nada demais naquilo, pois, segundo pai e filha, era natural para um homem solteiro satisfizesse certas “necessidades” no lugar devido para isso, sendo que, tal atividade, em nada desabonava o capitão.

Frustrado até a medula, Gaspar comentou com o irmão:

-Não bastasse ter me roubado a noiva, me roubou também a amásia ocasional…maldito capitão!

-Não simpatizo com conquistadores, mas certamente o capitão vai tomar tento depois de casar com Maitê.

Com o passar do tempo, a situação teve que caminhar para um necessário desenlace.

O coronel Antônio Bento exigiu uma atitude de Aparício, pois, segundo ele, “noivado muito longo é que nem andorinha que não faz verão” e, isso, não se criava na sua família.. Assim, a data da cerimônia foi logo marcada para dali a dez dias.

-Quanto mais rápido correrem os proclamas, por menos tempo corre o assunto, pensou Aparício,

Após a oficialização do enlace, Aparício pediu mais um prazo para a impostergável impaciência de Deusidete, essa, ainda alheia ao compromisso do seu amado com a filha do coronel.

-Daqui a dez dias, vou fechar um negócio que vai garantir o nosso futuro. Depois disso poderemos definir a nossa situação, meu docinho apimentado, garantiu ela à impaciente morena.

Sobre que negócio seria esse, apesar da insistência de Deusidete, Aparício apenas dizia:

-Depois te explico, não vou falar nada agora para não atrair maus agouros.

Ao tomar conhecimento do anúncio do casório, Gaspar teve a derradeira ideia para impedir o indesejado casamento. Gabando-se da sua esperteza, revelou o bem bolado plano para o irmão:

-Um dia antes do casório, vou contar a novidade para a Deusidete. E eu mesmo vou levá-la para a cerimônia, aí quero ver se esse casamento não vai para o espaço. Depois vou consolar a Maitê e já aproveito e peço ela em casamento.

-E você acha que ela vai aceitar?

-A opinião dela não vai contar muito, pois duvido que o coronel não aceite esse remédio para lavar a honra ferida da sua filha querida.

-Isso é muita cachorrada, mano! E você nem faz isso porque gosta da Maitê!

-Ora, irmãozinho, amor e guerra, às vezes, são duas faces da mesma moeda. No fim, vence o mais esperto.

-Não se eu puder impedir, pensou Josias que, secretamente, sempre fora apaixonado por Maitê desde criança.

Chegada a véspera do casório, Gaspar foi curtir a noite na casa número cinco, chamou Deusidete e deu a surpreendente notícia para a estrela da casa sem maiores rodeios.

Perplexa, a exuberante morena empalideceu, sentou-se e ficou desfalecida por mais de dez minutos, sendo socorrida pelas colegas com abanos de leques e um remédio para pressão baixa.

Recuperada do baque, Deusidete lembrou-se da última conversa com o seu capitão:

-Ele disse que iria viajar para São Borja amanhã…então esse era o misterioso negócio de que ele tanto falava.

-O que você vai fazer sobre isso? perguntou Gaspar, cheio de expectativas.

-O que vou fazer? Ora o que vou fazer, vou resolver isso do meu jeito! Sei onde fica a fazenda do coronel Antônio Bento.

-Bem, eu fui convidado para a cerimônia e se você quiser uma carona, tem um lugar vago na minha charrete.

-Agradeço muito, Gaspar, exclamou Deusidete, aceitando o oferecimento sem pestanejar.

Duas horas antes do horário previsto para a cerimônia, a fazenda Boa Esperança começou a receber os convidados para o casamento do ano.

Os pais da noiva, empertigados e orgulhosos, os noivos, sorridentes, recebiam os efusivos cumprimentos da fina-flor da sociedade santiaguense.

A caminho da fazenda, Gaspar, Josias e Deusidete mantinham um significativo silêncio, todos burilando os próprios planos. A morena, já exuberante por natureza, caprichou como nunca no toilette e estava mais esplendorosa do que nunca no seu vaporoso vestido vermelho de gala.

Regulando a velocidade dos cavalos, Gaspar, o condutor do conjunto de tração animal, previu a chegada da pequena comitiva na cerimônia apenas quinze minutos antes do início da cerimônia.

-Assim todos os convidados estarão presentes e assistirão ao escândalo, raciocinou, maquiavelicamente.

-Não quero ser vista até o padre começar a cerimônia, disse Deusidete.

-Perfeito, concordou Gaspar. Agora falta pouco para chegarmos. Conduzir charrete dá sede, Josias, me passa o cantil.

-Claro, Gaspar, atendeu prontamente, Josias, com um misterioso sorriso.

Ao chegarem à fazenda, como combinado, Deusidete permaneceu na charrete, enquanto os dois irmãos foram cumprimentar os anfitriões e os noivos.

Após terem recebido uma centena de cumprimentos, os pais da noiva convidaram todos os presentes para a celebração da cerimônia que, a pedido de Maitê, ocorreria ao ar livre.

De imediato, todos os convidados se dirigiram para o espaço gramado com as cadeiras já dispostas ordenadamente.

Todos menos Gaspar que, inesperadamente, sentiu-se mal e, com uma careta de dor e as mãos na barriga, correu à procura de um banheiro, lá padecendo sofridamente por mais de duas horas.

Observando o perrengue do irmão, Josias filosofou:

-Perdão mano, mas como você mesmo diz, amor e guerra, às vezes, são duas faces da mesma moeda. No fim, perde quem toma água com purgante.

Chegado o momento final da homilia, o padre fez a clássica inquirição aos presentes:

-Se alguém souber de algum impedimento a essa união, que fale agora ou cale-se para sempre!

Mais amazona, decidida e estonteante do que nunca, Deusidete adiantou-se e falou com voz melodiosa, mas resoluta:

-Eu tenho, padre! Esse homem é meu marido!

Após esse terremoto, o cenário do casamento cristalizou-se por alguns segundos para, logo depois, desabar sem deixar pedra sobre pedra: padre boquiaberto, pais da noiva petrificados, noiva em processo de desmaio, noivo tentando cavar um buraco para esconder a cabeça, convidados estarrecidos soltando um interminável “óóóóó!”

Impassível, a morena reclamante caminhou resolutamente até o lívido noivo, agarrou-o por um braço e falou com autoridade majestática:

-Eu deveria te dar uns relhaços no lombo, mas depois a gente conversa. Agora vamos embora dessa cidade!

Embasbacado e encantado com aquela visão e com aquelas palavras da deusa escarlate, o garboso e perplexo noivo conseguiu apenas falar:

-Sim, meu docinho apimentado. Perdão!

De imediato, Josias apressou-se em amparar a chorosa noiva e, reunindo toda a coragem de que era capaz, falou carinhosamente ao seu ouvido:

-Maitê, você é a mulher mais maravilhosa desse mundo. Sempre te amei! Você aceita se casar comigo?

Ainda recuperando-se do choque, Maitê, surpresa, olhou para Josias como se olhasse para um anjo e, compungida, falou:

-Sim, eu aceito!

Após alguns minutos de conversação entre os pais da noiva, Maitê, Josias e o padre, os devidos acertos foram rapidamente promovidos.

De cabeça erguida, o coronel Antônio Bento anunciou aos convidados:

-A cerimônia vai prosseguir, podem retomar os seus lugares!

Já na estrada, conduzindo a charrete que havia trazido Deusidete para a fazenda, o capitão Aparício Rodrigues ainda ouvia a merecida descompostura da amada:

-E nunca mais você vai fazer qualquer negócio sem a minha aprovação, tá ouvindo capitão?

-Certamente, minha querida! E para onde vamos agora?

-Para São Borja, cidade da minha família. Lá tem outro padre nos esperando, alguma discordância?

-Claro que não, meu docinho! Você é quem manda!

Fim

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