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Resoluções e revoluções

Passada a missa de sétimo dia, Eurico mandou chamar o tabelião da vila à fazenda. Indagou ao bacharel se tinha conhecimento das disposições testamentárias do finado.

– Não posso dizer. Sua excelência fez um testamento cerrado, em minhas notas, faz um ano e oito meses. Havia um anterior, revogado na ocasião.

Eurico espantou-se com a revelação. Então o Coronel, por alguma razão, mudara de ideia sobre o primeiro testamento. O tempo da mudança coincidia com o período após a última briga que tiveram, discussão das graves, em que o filho ofendera grandemente o pai. Soube, no entanto, que o coração do Coronel baixara à sepultura sem mágoas, a se confiar nos relatos de Erasmo que, sem dúvida, eram verdadeiros.

Pois a ansiedade de Eurico foi crispando até o dia em que, no grande salão azul da fazenda, o testamento serrado foi trazido pelo tabelião e, cerimonialmente, teve os lacres quebrados na frente dele, do padre Manoel Estrela, do Juiz de Paz, Joaquim Furtado de Menezes, e de vários outros moradores da fazenda, livres e escravizados, que o compadre e amigo próximo do finado, Doutor Dilermando Barbosa, havia feito chamar no escrupuloso atendimento dos pedidos que o próprio Coronel lhe deixara na carta, pouco antes de adoecer.

O salão azul parecia menor naquela tarde sem vento. O tabelião pousou a pasta de couro sobre a mesa; o Juiz de Paz lustrou os óculos; o padre roçou os lábios no crucifixo; os feitores colaram as costas à parede; em volta deles, livres e cativos, com olhos de susto e esperança, enchiam o ar de um zumbido contido.

Iam começar a leitura quando o Doutor Dilermando interveio:

– Esperem. Nesse grupo de escravas está Sabina Conceição?

– Sou eu, sinhô – respondeu a negra, já sob o peso dos anos e muitos labores, apoiada no parapeito da janela da direita.

– Vosso filho tem o nome Erasmo de Paula da Conceição?

– Aqui estou – confirmou o rapaz, que também se encontrava no salão.

Dilermando falou:

– O Coronel Francisco Antunes, de cuja amizade fui, por muitos anos, objeto, e era recíproca, instruiu-me, na carta em que mencionei, que o escravo Erasmo, filho de Sabina, deveria sentar-se à mesa por ocasião da abertura do testamento.

Uma risada hostil estalou como um chicote pelo recinto. Surpreendente. Era Eurico, que há poucas horas era consolado em suas mágoas por Erasmo. Perguntou em tom de voz áspero.

– Para quê esse ritual, senhor tabelião? Colocar um escravo sentado à mesa em evento tão solene.

– Não vejo nenhuma ilegalidade no cumprimento dessa disposição de vontade do senhor Coronel. Esperarei o escravo assentar-se para que prossigamos

Os outros cavalheiros menearam a cabeça positivamente, em silêncio.

Atônito, Erasmo tomou parte daquela insólita assembleia, na dúvida sobre a razão de tudo aquilo, pensando que, talvez, o velho senhor fosse recompensá-lo pelo apoio e companhia nos tempos de solidão e doença.

O tabelião principiou a leitura:

Em nome de Deus, amém. No ano da graça de 1877, aos dezesseis de agosto, eu, Coronel Francisco Antunes, filho dos finados Eurico Antunes e Ana Madalena Cavalcante Antunes, natural de Juparanã, província do Rio de Janeiro, onde nasci em outo de julho de 1811, no estado civil de viúvo de Zenóbia de França Antunes, no perfeito gozo de minhas faculdades mentais, declaro serem as seguintes minhas disposições para depois da minha morte: reconheço irrevogavelmente como meu filho natural a Erasmo de Paula da Conceição, filho de Sabina, nascido em 1857, pedindo-lhe perdão por todos os desgostos que possa ter de seu pai ao longo da vida, reconhecendo o muito que me alegrou e proveu cuidados e companhia nos últimos anos de minha existência. Deixo para ele metade de todos os meus bens disponíveis, destinando a outra metade para meu filho legítimo, Eurico José Paulo de França Antunes, rogando a ambos que, com fraternidade e entendimento, mantenham a fazenda do Morro Verde, do Capão e da Várzea Pequena, todas neste
município, sem dispersarem a propriedade e seus aprestos, aplicando nelas a mão-de-obra remunerada de imigrantes da Europa, como, com sucesso, já vem sendo feito no interior das Minas Gerais e São Paulo. Declaro, neste ato, que deixo alforriados todos os escravos de minha fazenda, legando, a cada família, um lote de terras na Fazenda do Barreiro, ou meio lote aos solteiros e viúvos, que será inalienável por trinta anos e perpetuamente foreiro à Santa Casa de Valença por disposição da minha vontade. Revogo quaisquer disposições testamentárias anteriores, por completo. E, nomeando testamenteiro e executor destas minhas disposições ao meu amigo leal e compadre Doutor Dilermando Barbosa, acresço meu desejo de ser enterrado no cemitério da vila, ao lado da campa onde jaz minha virtuosa esposa, em sepultura caiada e simples, sobre a qual não se erguerá monumento ou se colocará inscrição alguma, esperando que Deus tenha piedade de minha alma.

Os que entenderam o teor do documento, olharam-se atônitos. Sabina levou as mãos à cabeça e caiu de joelhos. Os olhos de Erasmo encheram-se de água antiga; Eurico, de pé, bateu na mesa:

— Absurdo! Loucura!

Ficou rubro de raiva e despeito. E vociferou:

–Este documento é nulo. Sem dúvida fruto de algum enfeitiçamento ou loucura! Não é possível.

Doutor Dilermando e o Juiz de Paz tentaram acalmar o rapaz que, insolente, afastava os cavalheiros. Ele retirou-se para o gabinete anexo e, nervosamente, começou a procurar um volume na estante, sobre sucessões, amaldiçoando-se por não haver prosseguido nos estudos jurídicos.

Teve a resolução de voltar o mais rápido possível à corte para procurar os melhores advogados. Iria requerer a nulidade do testamento, alegando coação ou loucura paterna.

Enquanto isso, na sala, os agora homens e mulheres livres davam vivas e alegravam-se, chorando e rindo, rezando pela alma do velho Coronel.

Erasmo chorava também, copiosamente, abraçado à sua mãe, com um misto de sentimentos, nos quais se incluía o receio do que o meio-irmão iria fazer.

Lembrou-se da infância, das lições da preceptora germânica, da brandura com que fora tratado pelo Coronel à medida em que ia crescendo, e como, nos últimos tempos, andaram tão cúmplices e próximos. Não se sentia, em absoluto, um homem de sorte. Afinal, por quase toda sua vida fora escravo, e desde muito jovem tivera essa consciência. Mas esperava fazer algo de bom dali para frente, recomeçar, desenhar um futuro.

Ainda repousava sobre a mesa o documento aberto e lido pelo tabelião, onde, em letra clara e bem feita, fixara-se toda a vontade do finado Coronel.

Do lado de fora, um vento breve varreu o terreiro, como se a fazenda respirasse em longos haustos depois de anos de apneia.

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O Capítulo IV deste folhetim será publicado na quinta-feira, 25.

Daniel Marchi (@prof.danielmarchi) é editor-executivo de Notibras.com, onde, com Eduardo Martínez e Cecília Baumann, comanda o Café Literário. Carioca, é advogado e professor. Poeta, escreveu os livros “A Verdade nos Seres” e “Território do Sonho” (no prelo).

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