Reunião do Tribunal da Santa Inquisição do cdb (cidadãos de bem), algum dia de setembro de 2022. (Eles podiam perfeitamente usar a sigla ccdb, cidadãs e cidadãos de bem, mas não, machistas na última.)
– Cidadãos – começou o cidadão em chefe (CEF), vestido com uma roupícia de juiz verde e amarela, ridícula –, estamos aqui para condenar, quer dizer, julgar a cidadã Edna, que anda namorando um esquerdalha.
(Espanto e indignação generalizados).
– Gen-gente, não estou namorando, foram só umas saídas… – gaguejou Edna.
(Indignação maior ainda).
– Cuidado, cidadã. Sexo sem casamento, e muito menos sem namoro, mostra que vosmecê não é conservadora nos costumes. Está correndo um sério risco de ser afastada do nosso Simpósio – rosnou o CEF/juiz, que gostava de usar palavras difíceis e termos antiquados. O tiozão de verde e amarelo respirou fundo e continuou:
– Mas há coisas muito piores. Temos contatos com o serviço secreto do Homem, qualidade de primeiro mundo, e soubemos que o seu comedor tatuou, na banda esquerda da bunda, as palavras Viva o, e na banda direita, munismo. Vosmecê sabia disso?
– O…olha, já tinha visto, claro – gaguejou mais uma vez Edna. Mas não sei o que quer dizer – mentiu. – Gente, não tenho certeza, mas acho que é uma referência ao comunismo.
Mentira deslavada, ela sabia que, lendo-se tudinho – inclusive, depois do Viva, o termo vulgar para ânus –, ficava Viva o comunismo, ou quase isso.
Edna sorriu pela primeira vez.
– É o único defeito do Luciano, ser meio comuna. Ele escreve bem, é jornalista… – falou, apesar do nervosismo, com a pontinha de orgulho da mulher pelo homem que lhe dá um trato gostoso.
– Na Foice de São Paulo? – cortou o CEF.
– A… acho que não. Não sei… – mentiu a mulher, mais uma vez.
Claro que era na Foice de S.Paulo, ou melhor, na Folha de S.Paulo. Claro que ela sabia. Como sabia que a tatuagem era uma brincadeirinha do Lu, aquele esquerdista delicioso. E também sabia que a barra perigava pesar para ela. Começou a suar, cada vez mais nervosa.
– Cidadã, cuidado! Sua presença entre nós está por um fio! – rosnou ameaçador o CEF.
Nervosíssima, Edna tentou se defender.
– Vocês não podem fazer isso comigo! Sou uma fiel seguidora do Bozo…
E aí deu chabu. Em vez de chamar o Imbroxável de Mito, de Homem ou de qualquer babaovação semelhante, ela havia usado um dos termos de escárnio de sua messiânica figura. Tudo culpa do Luciano, aquele comuna que a levava às nuvens e que só se referia a Ele com um nome de tirar sarro. E ela, molinha depois do amor, fingia indignação mas às vezes entrava na brincadeira.
– Bozo! – uivou o CEF/Inquisidor. – Acabem com a traidora!
Edna, que conhecia seu gado (real e metaforicamente), já havia corrido para a porta, e escapou só com alguns pescoções e chutes na bunda. Podia ser pior, muito pior. Foi manquitolando pela rua, enquanto pensava.
“Ah Luciano, tudo isso culpa tua… Vais ter de me dar muito prazer pra eu te perdoar, meu comunazinho querido!”
