Notibras

Saberes, surpresas, expectativa

Um dia, recostado a uma cadeira de vime na saleta, o Coronel lia uma folha vinda pelo Correio Imperial havia algumas horas, e o pequeno Erasmo, à roda dele, achou engraçada a figura de um homenzinho com uma trouxa sobre o ombro, sustentada numa vareta, e o numeral “100U000”. E leu: es-cra-vo fu-gi-do.

O Coronel tirou os olhos do jornal e olhou-o aturdido.

– Como é que você aprendeu a ler, menino?

– Foi a Frau branca, nhonhô. Ela me ensina junto a Euriquinho.

O Coronel achou graça, e disse para, dali em diante, a preceptora dar o mesmo ensino a ambos os meninos. Não que lhe tocasse o coração o desenvolvimento de um escravizado, mas é que um moleque daqueles sabendo ler, escrever e fazer contas, sabendo um pouco de corografia e história, seria uma bela curiosidade para exibir às visitas.

Pois, ao longo do tempo, Erasmo mostrou-se muito mais afeito aos estudos que o próprio Eurico. Desenvolveu-se inteligente e repleto de ideias novas, muitas delas trazidas pela preceptora, pelos livros que lia, pelos jornais da Corte.

A vida passou ligeira na grande fazenda, sem sobressaltos, até o ano de 1879, quando o Coronel foi acometido de renhida doença. Clínicos e cirurgiões vieram da corte, mas não houve resultados positivos.

Na época desses sucessos, brigado com o pai, Eurico já se retirara da fazenda por dois anos. No primeiro, começara a faculdade de direito em São Paulo. No segundo, havendo desistido do curso, trabalhara na corte como jornalista, causando no velho alguma revolta.

– Isto é profissão sem futuro. Tu já gastaste uns bons contos da herança materna, e não disseste a que veio.

– Senhor meu pai, escrevo em uma das mais importantes folhas da província.

Não bastava. O Coronel queria que o filho seguisse a profissão militar, ou se empenhasse na faculdade. Recebera informes da corte, dando conta que o filho se entregava a toda sorte de dissipações. Noitadas, bordéis, bebedeiras… O lugar em que menos o encontravam era na redação. Tiveram um grave atrito quando discutiram o direito de Eurico controlar sua parte na herança da finada mãe. Romperam.

Francisco Antunes, senhor de homens e campos, era feito de duras certezas e de um bom punhado de remorsos que vinha escondendo no bolso do colete. Em cavalgadas compridas por Morro Verde, lembrava da mão de Zenóbia afrouxando no lençol e do olhar de Sabina — a um só tempo servil e consolador — quando o leite passou de um seio para outro.

As visitas, o compadre, o padre-confessor Manoel Estrela, todos sabiam, e lhe diziam, que a morte cobra contas. O Coronel, que mandara mais do que qualquer juiz, começou a desconfiar que, diante da eternidade, seu comando era pó.

Lembrava de Erasmo a soletrar nomes de reis e batalhas, recitando versos de Camões, trechos das escrituras, os rios do Amazonas; Eurico, de temperamento irrequieto, debater-se entre a disciplina e as tentações da Corte. E a cada noite, a pena descansava ao lado do tinteiro como quem espera ordem: escrever o que a boca não ousava.

Numa carta cerrada ao compadre Dilermando Barbosa, homem de leis e lealdades, o Coronel ditou, com letra trêmula, os ossos do que viria a ser escândalo: reconhecer sangue, repartir bens, libertar os cativos e mandar que a fazenda mudasse o braço do cativeiro para o salário do imigrante. Não por virtude que se alardeie, mas por uma mistura de culpa, claridade tardia e desejo de salvar a própria alma.

Euriquinho só voltou à fazenda porque recebeu carta de Erasmo dizendo para que ele viesse ver o pai doente. Nas últimas.

Foi a conta. Duas semanas após a chegada do filho, o Coronel expirou entre sofrimentos atrozes. Pela segunda vez, um raio se abatia sobre o universo daquela gente.

Um golpe de remorso caiu sobre a cabeça de Euriquinho. Sentiu que a decepção causada ao pai apressara sua morte. Erasmo o consolou:

– Ficamos muito próximos depois da sua partida. Diversas vezes ele disse “a felicidade de meu filho é minha maior preocupação”. Era só zelo, Euriquinho. Só zelo.

– Mas sinto que poderia tê-lo feito mais orgulhoso de mim.

Era tarde.

Erasmo contou ao agora Senhor o que se passara. Nos últimos tempos, preocupado com os destinos da lavoura, o Coronel ouvira do escravo que, em alguns lugares do Brasil, já se substituía paulatinamente a mão-de-obra servil pela assalariada, e que a escravidão tinha cada vez mais críticos atrozes. Era questão de tempo para ser abolida.

O velho homem, sensível às ideias do inteligente companheiro, refletia e refletia.

Nos sete dias que sucederam o enterro do Coronel, Eurico ia diariamente ao cemitério, acompanhado de Erasmo, ao lado da igreja matriz da vila. Lá, na beira da sepultura, Eurico pranteava o pai, sempre consolado pelo escravo fiel, antigo “irmão de leite”.

Ainda não sabiam, mas um germe de resolução vinha tomando forma na alma do jovem, que agora seria chamado a decidir os destinos da grande fazenda e todo seu povo. Secretamente, ansiava liquidar tudo. Vender as terras de porteira fechada, seus aprestos, os trens de casa, com ou sem o plantel de escravos, o que rendesse melhor preço. Chamaria Erasmo e iriam, juntos, para a cidade. O escravo lhe serviria de pajem. Mas decidira nada dizer, enquanto não começasse o processo de sucessão. Pois ainda era preciso cumprir o testamento em juízo e, depois, começar o inventário. Não seria rápido, nem fácil. Mas compreendera que sua vida não era mais ali.

…………………………………………..

O Capítulo III deste folhetim será publicado na quarta-feira, 24.

Daniel Marchi (@prof.danielmarchi) é editor-executivo de Notibras.com, onde, com Eduardo Martínez e Cecília Baumann, comanda o Café Literário. Carioca, é advogado e professor. Poeta, escreveu os livros “A Verdade nos Seres” e “Território do Sonho” (no prelo).

Sair da versão mobile