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Se ninguém é normal, por que ainda fingimos ser?

Ele falava com os passarinhos. Toda manhã, antes do sol se espreguiçar nas janelas mofadas do hospital psiquiátrico, lá estava ele: calmo, sorridente, cabeça inclinada pro céu. Os médicos anotavam: “delírio auditivo”.

Eu anotava outra coisa: esperança em forma de chilrear.

Do outro lado da ala, tinha um rapaz que achava que era Deus.

E se ele for? pensei.

Os manuais não gostam de perguntas. Preferem respostas classificatórias.

Já a vida… ah, a vida adora uma dúvida.

A primeira vez que entrei num hospital psiquiátrico como pesquisadora, me preparei com livros, fichas, gravador e a ilusão de que sabia o que estava fazendo.

A segunda vez, entrei só com caderno e escuta. E foi aí que percebi: talvez o que a gente chama de loucura seja só a sinceridade em volume alto demais.

Tem gente que se diz normal, mas vive num looping de boletos, reuniões inúteis e sorrisos automáticos. Pede delivery chorando, publica frases motivacionais enquanto dissolve aos poucos na ansiedade e se orgulha de dizer: “nunca precisei de terapia”.

Nunca precisou ou nunca teve coragem?

A sociedade exige que a gente se adeque, mesmo que isso nos adoeça.

E quando alguém desvia da linha, surge o rótulo: “doido”, “pirado”, “problemático”.

Só que, se formos bem honestos, quem nunca dançou no limite?

E mais: quem decide onde esse limite começa?

Certa vez, um paciente me disse: Moça, eu não sou doido. Eu só parei de fingir que tava tudo bem. Foi a melhor definição de sanidade que já ouvi.

A loucura é um espelho torto: reflete o que a sociedade tenta esconder.

E quando o espelho quebra, sobra caco pra todo lado cacos que contam verdades que incomodam.

Como diria Basaglia, o problema não é a loucura. É a violência que se pratica contra ela.

Hoje, fora dos muros, percebo que muita gente chamada de “normal” está desintegrando em silêncio trancada não em hospício, mas no próprio apartamento.

E aí eu te pergunto, com toda honestidade intelectual e literária que tenho: se ninguém é normal, por que ainda fingimos que somos?

Talvez porque a normalidade traga privilégios.

E a loucura, vergonha.

Mas, dependendo do ponto de vista, ser “doido” é uma forma de liberdade que poucos suportariam.

O homem que fala com os passarinhos, a moça que dança sozinha no ponto de ônibus, o professor que responde as próprias perguntas com entusiasmo demais… todos eles são lembretes de que a vida é mais complexa do que o DSM diz.

Eu, por exemplo, tô doida pra viver.

Doida pra sentir.

Doida pra escrever o que ninguém tem coragem de dizer.

E se isso é loucura, então que me internem.

Mas com café, caderno e janelas abertas.

Porque só quem enlouquece um pouco entende a beleza de sair da caixa ainda que chamem isso de delírio.

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