Tem gente que chora no enterro. Eu choro lavando o banheiro.
Toda vez que a vida desanda, me dá uma vontade incontrolável de arrastar os móveis, varrer os cantos, trocar os lençóis. Como se cada poeira fosse uma lembrança, e cada pano molhado uma despedida silenciosa.
Luto, pra mim, é faxina.
Van Gennep, um dos primeiros antropólogos que li com gosto, dizia que todo rito de passagem tem três fases: separação, transição e reincorporação.
O divórcio é a separação.
A bagunça da casa é a transição.
A faxina, meu amor, é a tentativa dolorosa de reincorporar um novo eu.
Hoje acordei com o peito apertado. Fui até a cozinha como quem caminha para um velório. A chaleira apitou e o mundo me pareceu estranho, estrangeiro. A verdade é que estou de luto por versões de mim que eu enterrei sem velório, sem flores, sem aplausos. Só silêncio e sabão em pó.
Lavei o chão da sala com lágrimas e Veja multiuso. Lembrando do dia em que ele sentou ali, no meio da tarde, e disse que não dava mais. A dor da rejeição não está só nas palavras, mas no silêncio que vem depois, nos dias seguintes em que o som da ausência ecoa mais alto do que qualquer discussão.
A cozinha, então, virou campo de batalha: pratos quebrados, panelas testemunhas da minha raiva surda.
E ali, entre as vassouras e os produtos de limpeza, eu compreendi: a faxina é meu ritual. Meu rito de cura. Minha liturgia doméstica.
Ninguém me ensinou isso. Aprendi sozinha, como se aprende a sobreviver.
Porque nem toda mulher tem tempo ou dinheiro pra terapia, mas muitas têm uma casa para limpar. E, nesse gesto aparentemente banal, colocamos nosso corpo para trabalhar enquanto o coração tenta encontrar sentido.
Engraçado como as pessoas acham que luto só se vive quando alguém morre.
E quando é a gente que morre um pouco por dentro?
E quando é o sonho que não aconteceu?
O casamento que terminou?
O amor que foi só nosso e ninguém viu?
Ninguém traz flores pra isso.
Mas eu trago sabão.
E pano de chão limpo.
E, às vezes, até uma música antiga que me lembra que eu ainda tô viva.
Fazer faxina é como reconstruir uma narrativa interrompida. É como dizer pra si mesma: a dor passou por aqui, mas eu também passo.
E quando, por fim, a casa cheira a lavanda e o corpo dói de tanto esfregar, há um tipo de silêncio que não machuca um silêncio de recomeço.
Porque a faxina não é só sobre limpar.
É sobre deixar ir.
Sobre abrir espaço.
Sobre sacudir a poeira literal e simbólica da existência.
E, no fim, percebo:
A faxina é o luto em forma de vassoura.
E, dependendo do ponto de vista, também é uma forma de ressurreição.
