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SEDUÇÃO, FÉ E APOSTAS SOBRE TRILHOS

O confortável trem da linha Paris-Roma seguia o seu curso e a viagem estava deveras agradável.

Alfredo e Dimas comentavam animadamente acerca da paisagem e das belezas turísticas europeias, ao mesmo tempo em que não deixavam de observar atentamente os demais passageiros do vagão.

— Olha, Dimas, aquela moça sentada ao lado do padre… que mulherão! Linda, distinta, e que ares de aristocrata!

— Maravilhosa mesmo, Alfredo! Uma verdadeira dama secular! Será francesa, inglesa, alemã…? Vamos apostar?

— Eu topo! Quem perder, paga o almoço. Aposto que é francesa!

— Muito bem, vou de Alemanha na cabeça!

— Hum… já que está na hora do almoço, que tal convidarmos ela e o padre para almoçar?

— Boa! Assim mataremos a charada e, ao mesmo tempo, poderemos conhecer a diva.

Traçado o plano e acertada a aposta, a dupla de abastados cavalheiros brasileiros levantou-se e, praticando um bom inglês, apresentou-se ao padre e à musa.

— Muito prazer, cavalheiros! Meu nome é Gina, respondeu a moça, também em um inglês fluente.

— Grazie, meus filhos! Eu sou o padre Inácio, articulou o religioso em um inglês macarrônico.

— Gostaríamos muito que vocês nos dessem a honra de almoçar conosco, convidou Dimas.

— Como nossos convidados, bem entendido, acrescentou Alfredo.

Diante de tão amável abordagem, a dama e o padre mostraram-se solícitos em aceitar o convite da cavalheiresca dupla de amigos.

Já no refeitório do trem, felizes com as agradáveis companhias, os amigos brazucas iniciaram a conversação com os europeus:

— Somos brasileiros e estamos em férias desfrutando das belezas da Europa, disse, alegremente, Alfredo.

— Excelente! Assim como o padre Inácio, eu sou italiana. Nós dois estamos retornando para Roma após um curto período de férias em Paris, explicou Gina.

Com uma piscadela de olho para o amigo contendo a mensagem implícita “nós dois erramos”, Dimas replicou:

— Que maravilha! Vocês dois já se conheciam antes dessa viagem?

— Não, meu filho, sentamos lado a lado por puro acaso, informou padre Inácio.

A conversa, tendo como centro a milenar cultura europeia e as múltiplas atrações turísticas do continente, prosseguiu animada.

Padre Inácio demonstrou total ausência de constrangimento em mostrar-se um bom garfo, enquanto Dimas e Alfredo derramavam-se em amabilidades dirigidas a Gina, ambos disputando ardorosamente a atenção da jovem e bela italiana.

— É uma delícia poder interagir com europeus, pessoas cultas, distintas e de boa cepa, elogiou Dimas.

— Sim, pessoas acima de qualquer suspeita que têm prazer apenas em fazer amigos, sem nenhum outro interesse subjacente, complementou Alfredo.

— Lamentavelmente, não podemos fazer isso no nosso país, lá estamos cercados de vigaristas e golpistas por todos os lados.

— Eu diria que em todo o continente latino-americano temos que tomar muito cuidado com quem conversamos.

No intervalo das garfadas do farto almoço, padre Inácio comentava sobre a importância da religião católica na consolidação da civilização e da cultura do continente.

Gina sorria alternadamente para os dois amigos e agradecia as amabilidades a ela dirigidas, discorrendo sobre a história dos seus antepassados aristocratas naturais de Florença.

Em meio às generalidades socioculturais da conversa, repentinamente a graciosa aristocrata italiana perguntou de chofre aos brasileiros:

— Os senhores apreciam jogos de cartas?

Agradavelmente surpresos, os amigos responderam:

— Claro, senhorita! Somos dois grandes apreciadores de Pôquer.

— Sempre andamos com um baralho no bolso. A senhorita conhece esse jogo?

— Ma certo che sì, cavalheiros! Minha família é entusiasta praticante desse maravilhoso passatempo.

— Que maravilha! Então que tal se aproveitássemos o restante da viagem para um carteado entre nós quatro?

Arregalando os olhos, padre Inácio observou:

— Meus filhos, nunca joguei esse jogo, até porque o meu ofício proíbe a prática de jogos de azar.

— Ora, padre, estamos entre amigos, será apenas uma agradável distração em boa companhia, arguiu Gina.

— O jogo é divertido e fácil de entender, padre, incentivou Alfredo.

— Sim, nós lhe explicaremos as regras em poucos minutos, acrescentou Dimas.

— Como a linda Gina disse, será apenas uma agradável confraternização entre amigos.

— Bem, creio que não será pecado se o estreitamento de amizade for o motivo desse novo aprendizado, concedeu o religioso.

— Excelente, padre! Cavalheiros, expliquem as regras para ele. Ah, e se não se importam, vamos jogar com o baralho novinho que eu comprei em Paris, animou-se Gina.

— Ótimo, senhorita! E eu tenho as fichas para apostarmos, arrematou Dimas.

Didaticamente, Dimas expôs as regras básicas do jogo, explicação que o padre Inácio pareceu compreender sem dificuldades.

A seguir, Alfredo mencionou a parte mais importante do jogo para um iniciante mentalizar:

— Vou escrever a ordem de hierarquia das combinações possíveis em um papel, padre:

1.Royal Straight Flush;

2..Straight Flush:

3.Quadra:

4.Full house;

5.Flush;

6.Sequência;

7.Trinca;

8.Dois pares;

9.Um par.

— De resto, é um jogo que combina poder mental, raciocínio analítico, destreza emocional, intuição e, claro, muita fé, comentou Alfredo, filosoficamente.

—Tenho certeza de que o senhor vai gostar padre, falou Gina, sorrindo.

— Que Deus me ajude, minha filha!

— Gente, para ficar mais divertido e interessante, proponho que apostemos algum dinheiro, uma quantia módica, naturalmente.

— Concordo, senhorita Gina! Pôquer sem um dinheirinho em disputa não é Pôquer, aquiesceu Alfredo.

— Sem dúvida, o ganhador tem que sentir o gostinho de embolsar algum valor real como recompensa da sua habilidade ou da sua sorte, seja como for, apoiou Dimas.

No refeitório já esvaziado, os quatro jogadores concordaram em estabelecer um limite de mil euros para as apostas, sendo que, cada ficha, teria o valor de cinquenta euros. Gina seria a responsável pela contabilidade e guarda dos valores do caixa.

— Meus filhos, me perdoem se eu tiver alguma dúvida, disse preocupado, padre Inácio.

— Não se preocupe, padre, estamos aqui para orientá-lo, acalmou-o Gina, com o apoio dos outros dois jogadores.

Nas primeiras rodadas, a descontração imperava entre os quatro jogadores. Alternadamente, eles se revezavam na mão vencedora e, aos poucos, já tinham criado um clima informal em que podiam praguejar ante uma má jogada ou comemorar acintosamente depois de uma aposta vencedora.

O sacerdote, muito compenetrado, parecia estar se adaptando maravilhosamente ao espírito e às premissas do Pôquer seguro. Não apostava quando tinha um jogo fraco e arriscava-se moderadamente quando suas cartas eram favoráveis, nunca se arriscando a blefar.

Não obstante, à medida em que o tempo passava, o clima da mesa foi ficando cada vez mais tenso em função da alta competitividade dos jogadores e do aumento crescente das apostas.

Representando o desejo íntimo de todos, Gina, incisivamente, falou:

— Cavalheiros, ceio que os valores que estabelecemos inicialmente já estão defasados para o nível do nosso jogo. Proponho que comecemos a próxima rodada com a aposta inicial de duzentos euros e que não haja limite para a aposta máxima.

— Eu aceito, mas como vamos garantir as apostas? Duvido que alguém aqui carregue muito mais do que mil euros em espécie, observou Dimas.

— Hum…é verdade, mas eu tenho uma solução, disse Gina:

— Os perdedores farão um depósito na conta do vencedor da rodada via cartão de crédito ou via pix, no caso de vocês, brasileiros.

— Eu topo, senhorita!

— Eu também topo!

— Minha filha, não sei se terei tal valor para honrar a aposta, não sou uma pessoa tão abastada quanto vocês, objetou padre Inácio.

— Não se preocupe, padre! Eu garanto a sua aposta caso o senhor tiver fé nas suas cartas.

— Obrigado, minha filha, então eu aceito… e que Deus me perdoe!

Desta forma, com as novas regras em vigor e em um clima eletrizado e mais tenso do que nunca, iniciou-se a próxima rodada da agora turbinada disputa.

Pela ordem sequencial, coube à Gina a distribuição das cartas. Com uma expressão circunspecta na face, a italiana habilmente embaralhou as cartas várias vezes antes de distribuí-las.

Após todos estarem com as cinco cartas iniciais em mãos, questionou:

— Então, amigos, descartem e digam quantas cartas vocês querem. Senhor Dimas, sua vez!

— Quero duas!

— Senhor Alfredo?

—Três!

— Padre?

— Uma carta, minha filha!

— Muito bem, duas para mim! Senhor Dimas, o senhor começa. Sua aposta?

Suando frio, Dimas, com uma quadra de reis diante dos olhos, falou:

— Subo para dez mil euros!

— Vendo um straight flush na sua mão, Alfredo, o jogador seguinte a se manifestar, replicou com o rosto crispado:

— Aumento para cinquenta mil euros!

Mais do que frio, suando em bicas, padre Inácio gaguejou:

— Deus, me ilumine! Amigos, eu aposto cem mil euros!

Gina, a última a apostar, olhando ferinamente para os adversários, sibilou:

-Elevo a aposta para duzentos mil euros! Façam o seu jogo!

Fez-se um silêncio sepulcral e o tempo parecia ter parado em volta da mesa.

Como em um duelo clássico de filme de faroeste, os jogadores se entreolhavam tentando entrar na mente dos oponentes.

Todos calculavam as probabilidades, ao mesmo tempo em que cada um mensurava o valor do jogo que tinha nas mãos.

Dimas rompeu o impasse:

— Eu aceito, duzentos mil euros!

—Também estou dentro, pago para ver, desafiou Alfredo.

— Deus, me perdoe! Eu também aceito a aposta!

Apostas encerradas e jogo fechado, Gina falou do alto da sua autoridade de crupiê da rodada:

— Muito bem senhores, agora vamos colocar as cartas na mesa ao mesmo tempo!

Como em um balé mágico ao abrir das cortinas, os quatro jogadores colocaram as cartas sobre a mesa, revelando simultaneamente o jogo de cada um.

Dimas: quadra de reis; Alfredo: Straight Flush do oito ao rei; Gina: quadra de damas; Padre inácio: Royal Straight Flush de ouro.

Extasiados, os jogadores olharem as quatro combinações das cartas e, automaticamente, suspiraram em uníssono:

— Inacreditável, quatro jogos vencedores!

Passado o encantamento com a inusitada situação, Gina proclamou:

— Parabéns, padre, o senhor ganhou!

— Meu Deus, eu ganhei? Você tem certeza, minha filha?

— Ela está certa, padre, meus parabéns!

— Parabéns, padre, jogo perfeito, imbatível!

Decepção dos perdedores assimilada e feitos os devidos pagamentos pelo celular, o padre sortudo falou:

— Meus filhos, pelos meus cálculos, em quinze minutos o trem vai fazer uma rápida parada em Berlim. Vamos dar um tempo no jogo até lá. Preciso sair e tomar um ar.

— Vou com você padre, também quero esticar as pernas um pouco, declarou Gina.

Conformados, os brasileiros concordaram com a pausa.

Dimas, simpaticamente, falou:

— Espero que você nos dê a chance de uma revanche, padre!

— Claro, meu filho, estamos todos nas mãos de Deus!

Passado o tempo de parada do trem, preocupados, os dois amigos comentaram:

— O trem já vai sair e eles ainda não embarcaram.

— Devem estar de volta a qualquer momento, com certeza eles já estão acostumados com essas paradas.

Todavia, para surpresa da dupla, o padre sortudo e a dama italiana não retornaram.

Alfredo e Dimas olharam pela janela e viram Gina na plataforma de mãos dadas com um homem.

Custaram um pouco a reconhecê-lo porque ele estava sem batina. Era o “padre” Inácio.

Os golpistas ainda tiveram a ousadia de, sorrindo, acenar para as duas perplexas vítimas.

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