Faz tempinho que a península itálica recebe imigrantes africanos. Voluntários ou involuntários.
Leo integrava a segunda categoria. Era um esplêndido leão-do-atlas, capturado na adolescência pelos romanos, quando vagava pelo norte da África. Atingiu a maturidade na capital do império, onde era funcionário público. Batia ponto no Coliseu.
Seu trabalho era simples, mas tedioso: matar prisioneiros na arena e depois devorá-los, total ou parcialmente. Leo não gostava muito, nada contra matar, mas se alimentar em público, ao som dos urros da tigrada? Preferia comer suas carcaças de gado na santa paz do recinto para feras do anfiteatro. Só que a plebe viciada no panem et circenses esperava mais dele, que abatesse e engolisse nacos inteiros das vítimas, e Leo, mesmo sem grande prazer, obedecia. Era o jeito, noblesse oblige, ou antes, leonesse oblige, comportamento leonino obriga.
Certo dia, Leo abateu um prisioneiro. Deu uma mordidinha fastidiosa na carcaça – e ficou fascinado pelo odor que se desprendia do cadáver. Mordiscou tentativamente um braço: o de sempre, ao molho. Partiu para o coração: um manjar dos deuses! Devorou-o e fez o mesmo com outras vísceras, todas deliciosas. O cérebro, então…
– Descobriu o que é bom, né, cumpadi?
Rosnando, Leo procurou o atrevido que ousava interromper seu repasto. Era outro leão-do-atlas, mais velho, mais safo, um veterano. Já naturalizado romano, atendia por Leone.
– É, tá uma delícia – admitiu o mais jovem.
– Sabe por quê? É um judeu cristão, crença nova. A carne e o sangue têm cheiro e sabor semelhantes à dos demais judeus, mas, por algum motivo, a fé cristã oferece um novo sabor aos órgãos internos, em especial ao coração e ao cérebro. Talvez a espiritualidade se prenda a esses órgãos, é só uma hipótese. Só sei que é assim.
(Leone estava parcialmente certo, até hoje muita gente acredita que as emoções e crenças residem no coração, não na mente.)
– Mas os judeus, os egípcios, os gregos que matamos aqui têm suas próprias crenças, e o sabor das vísceras deles não é tão bom…
– O politeísmo egípcio e grego e o monoteísmo judeu são muito antigos, o monoteísmo cristão é novinho em folha. Acho que é uma questão de idade, não que uma religião seja verdadeira e as demais, não.
Os dois parças decidiram manter a coisa em segredo, para diminuir a concorrência leonina. Além disso, passaram a prestar atenção ao que os guardas diziam; quando ouviam que seria oferecido à plebe rude um lote de egípcios ou germânicos, por exemplo, fingiam indisposição e nem entravam na arena; mas quando o circo recebia cristãos, caíam matando, literalmente, e lambiam os beiços depois de se deleitarem com as carninhas deliciosas. E as das mulheres eram ainda mais tenras, coisa de loko!
Os dois chegados também enviaram petições ao imperador, exigindo que não cessassem as mortes de cristãos no Coliseu, e ao mesmo tempo ameaçaram com os piores suplícios os guardas que dificultassem a difusão da nova fé. Contradições não dialéticas: ansiavam por deliciosas vísceras dos seguidores de Jesus, queriam que o número de nazarenos aumentasse incessantemente e que fossem todos enviados para suas bocarras felinas. O paladar exigente de Leo e Leone tinha razões que a própria razão desconhece…
Enquanto isso, Samuel, um escravo judeu, aguardava seu envio à arena. Era um homem dilacerado por dúvidas religiosas. O politeísmo não o atraía, embora reconhecesse a importância arquetípica das divindades do panteão grego, egípcio e de outras culturas; o problema era que não conseguia mais acreditar em Yahweh, o deus impiedoso e ciumento de seus antepassados. Ouvira as pregações dos difusores do cristianismo e, embora ficasse tentado, não chegara a se converter. Em resumo, quando lhe perguntavam se acreditava que, após a morte, iria para o céu, o inferno ou qualquer outro lugar, engolia em seco e não respondia ou balbuciava, “Não faço ideia”.
Chegou o dia em que Samuel foi arremessado na arena com outros judeus, vários deles cristãos. Leo o abateu com uma patada, sem matá-lo, mordiscou-lhe o peito, para liberar o odor dos órgãos internos, e recuou, repugnado: simplesmente não havia emanação de fé alguma.
– Isso não fede nem cheira! – rosnou com desprezo. E se afastou em busca de novas vítimas, deliciosas mulheres cristãs de preferência.
Foi assim que Samuel, talvez um dos primeiros agnósticos, sobreviveu na arena. Mas não por muito tempo, foi abatido um mês depois pela espada de um gladiador. Porque a galera queria ver sangue, e Roma não brincava em serviço.
Moral (?) da história: Seja agnóstico. Talvez isso não lhe assegure a vida eterna (se é que ela existe), mas oferece uma excelente proteção contra leões. E coma cristãs, não dá chabu.
