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Sobre a Dinamarca, o TNP e o futuro da segurança global

Nos últimos meses, um fato surpreendente começou a ganhar espaço não apenas nos corredores de poder de Copenhague, mas também na televisão dinamarquesa: políticos de partidos da situação e da oposição passaram a debater abertamente a necessidade de a Dinamarca reconsiderar sua adesão ao Tratado de Não Proliferação de Armas Nucleares (TNP) e até mesmo a ideia de dotar o país de meios próprios de dissuasão nuclear. Uma conversa que há poucos anos seria impensável tornou-se assunto de debate público, e não somente um assunto técnico nos bastidores do Parlamento.

Esse debate não surge do nada. Ele é uma resposta às movimentações estratégicas dos Estados Unidos em relação à Groenlândia, território autônomo do Reino da Dinamarca, que tem sido alvo de crescentes pressões de Washington por sua importância geopolítica no Ártico. Recentemente, o presidente dos EUA nomeou um enviado especial com declarações de que “Groenlândia é essencial à segurança nacional” e insinuações de que poderia até mesmo “torná-la parte dos Estados Unidos”, algo que provocou a ira de Copenhague e de Nuuk, que reafirmaram de forma veemente que não aceitarão anexação territorial e exigiram respeito à soberania dinamarquesa.

Esse tipo de movimentação, de um aliado tradicional da OTAN sugerir, mesmo que por retórica, o controle sobre território de outro aliado, reverbera como um tremor nas relações internacionais. Não porque seja de fato provável uma invasão, mas porque ilustram o que muitos analistas já vêm alertando: a antiga ordem de segurança coletiva e a estabilidade institucional que guiou a política mundial desde o fim da Guerra Fria está se desgastando. A normalização de discursos, que antes seriam considerados radicais ou conspiratórios, agora circula livremente nos grandes canais de mídia e nos debates públicos.

É nesse contexto que propostas hoje julgadas impensáveis começam a ganhar tração. Políticos dinamarqueses, enfrentando aquilo que descrevem como um ambiente internacional de crescente incerteza, marcado por grandes potências agindo unilateralmente, rasgando compromissos multilateralistas e forçando aliados a reavaliarem sua própria segurança. A ideia de repensar o TNP ou de algum dia possuir capacidade nuclear própria, ainda que distante da prática, emerge como consequência lógica dessa desordem estratégica.

O TNP, que entrou em vigor em 1970 e é hoje considerado a pedra angular do regime global de não proliferação nuclear, foi construído sobre o pressuposto de que a cooperação internacional e a confiança mútua garantiriam relativa estabilidade. Seus signatários prometeram limitar a disseminação de armas nucleares enquanto se empenhavam em reduções progressivas por parte dos Estados que já as possuíam.

Contudo, o que vemos em 2025 é um mundo em que a coerência desse sistema está sendo testada. Países que outrora se abstinham de qualquer ideia de armamento nuclear agora debatem abertamente essa possibilidade, uns na televisão, outros nos bastidores. E há ainda aqueles que já passaram dessa fase de discussão e avançam rumo a mecanismos concretos de defesa, impulsionados por um sentimento de vulnerabilidade que antes era socialmente inconcebível.

Há exemplos históricos que frequentemente emergem nesse tipo de debate: a Coreia do Norte, que se retirou do TNP no início dos anos 2000, sofreu décadas de isolamento, sanções e ameaças e só encontrou um elemento de dissuasão visível na produção de armas nucleares. A narrativa que muitos analistas do regime norte-coreano defendem é que essa capacidade foi o único fator que efetivamente desestimulou ataques diretos e abriu espaço para negociações, ainda que imperfeitas, com potências externas. Ainda que essa estratégia seja objeto de fortes críticas e debate internacional, ela é frequentemente citada como um caso de que “armas nucleares podem ser vistas como o último recurso de dissuasão”.

A dinâmica atual leva a uma reflexão mais ampla: quando grandes potências começam a agir de forma errática, rompendo ou enfraquecendo acordos multilateralistas e subjugando aliados em nome de interesses estratégicos, as respostas mais imediatas dos países menores ou médios tendem a ser negociações e tentativas de acomodação. Mas, a médio e longo prazo, isso pode gerar um retorno a políticas de realismo mais duro, em que a busca por meios de dissuasão, inclusive armas nucleares, emerge como resposta aos riscos percebidos.

Além disso, há uma percepção de fragilidade estratégica não apenas no campo militar: os Estados Unidos, por exemplo, se retiraram de tratados multilaterais importantes em anos recentes, como o Acordo de Paris sobre o clima e, em algumas reuniões internacionais chave, sequer enviaram representantes de alto nível. Ainda assim, outros atores continuam buscando avanços em negociações climáticas e multilaterais sem a liderança tradicional americana, mostrando que o sistema internacional se adapta, mas com tensões e fraturas evidentes.

Esse cenário mostra uma lição fundamental: ordens internacionais baseadas na confiança e em compromissos multilaterais são frágeis quando os interesses nacionais primam sobre as normas coletivas. E, quando essa confiança se desfaz, os Estados começam a reavaliar sua segurança de maneiras que, há apenas alguns anos, pareciam remotamente inconcebíveis.

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Lamartine Teixeira é Analista de Relações Internacionais.

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