“Se as feridas do teu irmão não te causam dor, a tua doença é mais grave que a dele.”
Frei Jaime Bettega
Acompanho sem uma opinião exata a invasão ao complexo do Alemão e da Penha, não por não ter importância, mas na correria do dia a dia mal tive tempo para assistir ao que estava ocorrendo, até a sexta de manhã, dia 31 de outubro, quando abro um dos grupos de whatsapp e me deparo com os comentários.
— Tenho pena do pai de família, não do vagabundo que morreu.
— Ninguém vítima da sociedade, estava nisso porque quer.
Nesse momento percebo que preciso ir em busca das notícias, compreender o que está acontecendo.
De um lado, políticos que comemoram os corpos empilhados no chão; do outro, familiares que choram diante de corpos nus.
Enquanto acompanho as notícias, a realidade, mais uma vez, vejo pessoas aplaudindo uma história que se repete dia e noite no Brasil, bandido bom é bandido morto, se esse bandido for o preto, pobre da favela.
Me recordo então de uma cena triste ocorrida no meu bairro.
Meninos pobres envolvidos com o crime morrem todos os dias, e não estou aqui a defender o crime, mas para ampliar essa visão de normalidade que envolve a todos nós.
Infelizmente perdi as contas de quantos meninos vi crescer e morrer devido a violência que envolve a periferia e um deles me marcou muito.
Início da noite, a pracinha cheia, adultos e crianças frequentavam o espaço que deveria ser de sossego e paz, mas alguns jovens passavam por ali levando e trazendo drogas.
Uma moto se aproxima, o carona desce, saca uma arma e pede aos frequentadores que saiam, encarando um jovem de apenas dezesseis anos diz:
— Menos você, você fica.
Diante da morte, o jovem desobedece e tenta correr, levando o primeiro tiro nas costas.
Numa tentativa frustrada ou desespero diante da morte, ele se vira, coloca as mãos no rosto e cai de joelhos, sendo atingido por mais dois tiros, morrendo em instantes em posição fetal.
A cena é triste, e claro, aqui vemos os comentários que cito no início desse texto, mas a cena a seguir para mim é pior. O corpo desfalecido ao chão aguardava a perícia que vinha da capital, chegando seis horas após o assassinato.
Uma viatura parada ao lado da pracinha, dois policiais aguardavam a chegada da perícia acostumados àquele crime, a mãe daquele jovem chorava em silêncio sentada em um banquinho de cimento ao lado do corpo do filho, que era praticamente uma criança.
Crianças com idade entre cinco e nove anos brincavam de pular por cima do corpo sem que os pais chamassem a atenção. As pessoas paravam curiosas e não se importavam com a dor da mãe presente, isso quando não fazia um comentário cruel.
E eu carrego comigo essa imagem como o reflexo de uma sociedade doente.
Que sociedade é essa que crianças brincam por cima de um corpo assassinado, e os pais não se preocupam com que elas estão aprendendo com isso, que sociedade é essa que não se comove com a dor daquela mãe que sofre, que sociedade é essa sempre pronta a condenar e indiretamente assassinar ou comemorar a morte de um jovem?
“Se a dor do outro não dói em mim, o doente sou eu.”
Como assistir a tudo isso e me limitar a pensar apenas que quem errou merece a morte e pronto? Sem o senso de justiça, sem empatia, sem compaixão.
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Mércia Souza, mãe, avó, artesã crocheteira e escritora, descobriu sua paixão pela arte ainda na infância, possui três livros publicados, dois romances e um de crônicas e participação em várias antologias. Fundadora do projeto “Mulheres com voz” sonha com um mundo de igualdade.
Atualmente reside em Cachoeiro de Itapemirim-ES.
