Acordei hoje com a sensação de que a vida me atravessa como na música Cotidiano, do Chico: “todo dia ela faz tudo sempre igual”. E é justamente isso que pesa no meu peito: esse tudo sempre igual que ninguém vê, mas que consome horas da minha existência como uma maré que não recua.
Eu me pego repetindo gestos: preparo o café, vou ao trabalho e volto, ajeito a casa, arrumo brinquedos, cuido das roupas, da comida, resolvo pequenos caos, apago incêndios invisíveis. Não estou sozinha. Para as mulheres brasileiras, há uma lista interminável de cuidados que não cabem numa agenda.
Os números, frios como manhã cinzenta, dizem que nós, mulheres, entregamos quase 10 horas semanais a mais do que os homens ao trabalho de cuidado não remunerado. Dez horas. Dez. O dado é de um estudo inédito da OIT e do MDS, mas parece que foi retirado da minha própria rotina, do meu próprio corpo, das minhas próprias olheiras e da de milhões de brasileiras.
E eu caminho pela casa como quem dança um samba triste, repetindo os passos que aprendi sem nunca ter escolhido. “Todo dia ela diz que é pra eu me cuidar”… mas quem cuida de nós mulheres? Quem recolhe nossos cacos quando o dia termina e a gente não se reconhece diante do espelho?
Nós, mulheres, queremos contar outra história. Uma em que o cuidado é dividido, compartilhado e, principalmente, reconhecido. Uma em que a gente possa respirar sem sentir culpa.
Talvez um dia, eu consiga cantar Cotidiano sem sentir que Chico estava falando de mim. Hoje, ainda não. Hoje, dói demais ser sempre ela, vivendo tudo sempre igual.
