Notibras

Triângulo amoroso com cheiro de peixe

Dolores era uma mulher de fino trato, Guilherme, um cafajeste tesudo, Rodolfo, um romântico abestado.

Numa versão contemporânea do poema Quadrilha, de Drummond, Rodolfo, 60 anos, estava a um tiquinho de se apaixonar por Dolores, 62 anos, que gostava de transar com Guilherme, 48 anos, que não amava ninguém, mas traçava todas. Ou pelo menos tentava.

Rodolfo havia conhecido Dolores na casa de uma prima dela, uma semana antes da Noite do Peixe – como o episódio foi designado pela heroína (sic), em comentários posteriores com as amigas. Ele ficou impressionado pela mulher madura, de belas feições e corpo bem feito. Mas foi sua delicadeza que o conquistou. Conversaram longamente sobre cinema, música e culinária. Foi esse o problema.

Na Noite do Peixe, Dolores recebeu Guilherme em seu apartamento, para uma sessão de sexo. Comeram alguns queijos, beberam um bom vinho e começaram a se pegar.

– Vamos pra cama, querida – murmurou Guilherme, a voz rouca de desejo, enquanto acariciava a mulher.

– Vamos sim, amor. Só vou ao banheiro antes.

Nesse momento, tocou o interfone.

– Esquece – rosnou Guilherme.

– Não, Gui, pode ser um de meus filhos – e foi atender. Com uma cara de péssimos amigos, Guilherme a acompanhou.

Mas não era um filho e sim Rodolfo, mais aparvalhado do que nunca e recém-apaixonado.

– Boa noite, querida. Eu estava passeando pelo seu bairro [o que era meio estranho, ela morava na Bela Vista, ele, no Belenzinho], quando passei por uma peixaria e vi uma magnífica posta de atum. Pensei, “Por que comprá-la? Por que não comprá-la?” – deu um risinho com a citação de um personagem de Chico Anísio, pena que não lembrasse o nome, um risinho que também se pretendia sedutor, e prosseguiu, impávido. – Aí lembrei que você gosta de sushi e comprei-a. Devo informar que, modéstia à parte, sou um excelente sushiman. Estou aqui embaixo, preparado para fazer pra você o melhor sushi da sua vida. Abra a porta, querida, por favor!

– Melhor não, Rodolfo. Estou com um amigo. Outro dia, talvez.

– Mas…

– Boa noite, querido – disse a mulher, gentilmente, para amenizar a recusa. Estava tranquila, tinha dado o recado, pra bom entendedor, meia palavra basta.

Mas Rodolfo, o romântico incurável, estava longe de ser bom entendedor.

No apartamento, Dolores e Guilherme voltaram a se atracar, para recriar o clima momentaneamente desfeito. Cinco minutos depois, a campainha soou. Dolores foi abrir a porta, já sabia quem era. Guilherme também sabia.

– Boa noite, amor – disse o amoroso sem noção. – Uma mulher abriu a porta e entrei junto. Pedi pro porteiro não avisar, para não estragar a surpresa. – Vendo a fisionomia contrariada da mulher, acrescentou – Não se preocupe, não sou ciumento. Espero que seu amigo goste de comida japonesa. De qualquer modo, ele deve ir embora logo, não é? Aí teremos a noite só pra nós…

Foi nesse momento que Guilherme apareceu. Estava sem camisa, para intimidar o rival com a visão de seus bíceps poderosos.

– Tu é o cara da peixaria, né? – provocou Guilherme num tom agressivo. – O entregador de atum. Tenho um peixe pra você chupar. Uma manjuba. Mas se morder quebro teus dentes na porrada. E depois vamos dividir um baiacu. Eu te dou o baia, tu me dá o resto… – e soltou uma risada escrachada.

Só então caiu a ficha de Rodolfo. Pediu desculpas a Dolores por ter subido sem avisar e cambaleou até o elevador, indo embora.

Depois disso, a noite foi de mau a pior. Dolores ficou indignada com a grosseria de Guilherme, não permitiu que ele lançasse a vara de pescar em seu laguinho de águas mornas.

O cafajeste, por sua vez, foi embora furioso, disposto a pegar a primeira mulher que sorrisse pra ele ou a dar porrada no primeiro cara que o olhasse meio atravessado. O que pintasse primeiro. “Qualquer prazer me diverte”, rosnou para si mesmo.

E Rodolfo, o pobre abestado, desiludido do amor? Foi para o Belenzinho de metrô, gastara boa parte de seu dinheiro na posta de atum; de sua pessoa emanava um enlouquecedor cheiro de peixe que seduziu todos os gatos vadios da redondeza. Entrou em casa rodeado de felinos que se roçavam em suas pernas e miavam para ele, implorando por carinho. E, claro, por um pedacinho daquele manjar dos deuses.

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