Notibras

Um amor do lado de cá do mar, que fez esquecer a saudosa Salamanca

Deitado na rede. Caipirinha na mão. Miguel olha o horizonte interrompido pelas ilhas Cagarras.

Do alto do morro, tem a vista privilegiada do mar do Rio de Janeiro.

Agora, com a cor de nuvens cobrindo a cabeça. Precisa de óculos e suas mãos tremem. Miguel não consegue mais segurar seu violino. Motivo de sua vinda para o Brasil. Todavia, Conceição o mantém afixado à parede na entrada da Pousada.

Uma história de amor que mudou a vida de duas pessoas com raízes distantes e diferentes.

Miguel tecla lentamente. Sente dificuldade em digitar mais uma letra de música na tentativa de concorrer para a próxima seleção de samba para a escola.

Um gringo, sambista, já foi piada no inicio, mas sua persistência acabou por convencer seus parceiros letristas de que levava a sério sua intenção. Mesmo que nunca tenha sido vitorioso.

Afinal, é difícil dobrar a raiz.

Conceição se aproxima e senta ao seu lado. Avisa que a jornalista já chegou para a entrevista.

– Prazer sou Amanda. Jornalista da Revista Fato & Critica. Obrigada por me receber.

– Bem vida, Amanda. Sente-se. Eu é que agradeço poder contar a nossa história.

Conceição se achega mais a Miguel. Eles ainda têm o hábito de sentarem próximos de mãos dadas.

– Podemos começar?

– Claro. O que você quer saber?

-Tudo. Contem-me tudo desde o começo.

Meu nome é Miguel Romero Garcia. sou espanhol do norte. Salamanca. Minha família sempre se dedicou à música clássica. Meu pai maestro, minha mãe pianista e eu – filho único estudava para ser regente.

– Desculpe interromper, mas maestro e regente não é a mesma coisa?

– Não. Muita gente não sabe, mas regente é o profissional com educação formal que comanda uma orquestra ou coro. Responsável por dirigir grupos musicais. Sua interpretação depende da leitura de partitura e do entendimento que tem da peça escrita. Geralmente usa a batuta para sinalizar tempo e a intensidade. Todavia também pode reger com as mãos. Seu objetivo é organizar o ritmo e a expressividade da música. Atua como elo entre o compositor e os instrumentistas. Já o maestro é um título que significa mestre. Não precisa saber ler partituras ou ter a educação formal Mas o trabalho de ambos se assemelha.

– Nossa! Nunca tinha pensado nisso.

– Continuando…
.
Meus pais não concordavam com um namoro que eu tinha na época e resolveram me presentear com um contrato de trabalho no Brasil.

Especificamente na cidade do Rio de Janeiro. Todos falavam maravilhas da cidade, do povo, do clima. E achavam que nesse período eu esqueceria a namorada indesejada.

– Seria…

– Ah! Não. Eles não gostavam de Maria porque não demonstrava nenhuma afinidade com a música, das vezes que tentou impressionar foi um desastre e por mais que se esforçasse seu talento era ser exuberante e sabe… Mamãe detestava. Óbvio que meus olhos ficavam vidrados diante de tanta beleza.

“Bem. O fato é que dois meses depois desembarquei no Rio de Janeiro. Fui recebido por Marco Aurélio, um violoncelista da orquestra sinfônica do Teatro Municipal. Foi uma excelente acolhida. No princípio pensei que faria parte da orquestra, o que foi descartado. .Fui apresentado a um grupo de fomento cultural para que desenvolvesse projetos sociais com jovens de comunidades. Iniciando-os nos clássicos.”

– Fiquei surpreso. Marco me levou para a empresa contratante onde assinei o compromisso de trabalho pelo período de três anos (achei muito tempo, contudo, não era momento de discutir). Também recebi as chaves do apartamento, orientações sobre comportamentos e plano de trabalho: horários, locais e contatos. O apartamento ficava em Copacabana- uma rua barulhenta durante o dia, como uma metrópole, mas, principalmente à noite. Eu não estava acostumado e passei a usar protetores de ruído a fim de poupar meus ouvidos afinados.

“Algumas vezes foi engraçado. Eu esquecia de tirar os protetores e as pessoas pensavam que eu fosse surdo. E, ao saber o que iria enfrentar jovens… achei melhor poupar-me. Meu primeiro dia foi um desastre. Fiquei chocado com as condições de vida daqueles adolescentes, suas vestes desprovidas de tudo, principalmente, sapatos. Percebi que os instrumentos eram cedidos; alguns em estado deplorável. Como tirar músicas de cordas inadequadas. Mas por outro lado, as alegrias que
demonstravam o interesse em aprender, despertaram em mim um sentimento incrível de persistência.

– Conversei com meus novos contratantes e obtive sucesso na aquisição de violinos, violoncelo, piano, e tudo mais para compor a nossa orquestra. Passamos dias aprendendo a afinação e a perceber a necessidade de ser só uma voz a se derramar em outras-harmonia. Foi um período de rica experiência para mim. Com eles aprendi mais do que toda a vida na escola de música que pertenci.

“Certa vez, ao chegar fui surpreendido. A orquestra estava com nova participação. Era meu aniversário e eles prepararam uma música clássica ao ritmo da musica raiz – o samba. Em princípio fiquei chocado. Meus ouvidos gritaram, mas aos poucos fui absorvendo o batuque, o pandeiro, o reco-reco e um bandolim que me encantaram. Descobri um novo caminho.”

– Ainda me deslumbrei com a presença de uma passista quase despida de roupas num corpo exuberante; interpretava a dança sobre sapatos tão altos que não sei como conseguia se equilibrar. Era a minha Conceição. Daquele dia em diante, mudei totalmente a minha visão do mundo musical. Trabalhei dias em partituras com composições e adequações ao ritmo do samba. O resultado foi incrível!

“A partir daquele momento eu queria me aprofundar naquela comunidade e a Conceição me apresentou a grupos de sambistas que praticavam rodas de samba regada a cerveja que começava ao entardecer e sem hora de acabar. Passei a viver mais tempo no morro do que no apartamento. Durante as rodas de samba analisei e, conheci todos os instrumentos usados numa escola de samba cuja gloria se revelava no período de carnaval. Parei de escrever para os meus pais. Não entenderiam a minha transformação.”

– Comecei a perceber que Conceição se interessava por mim, e obvio que eu era vidrado nela. Passamos a ter um romance. E digo – essa cabrocha me enlouqueceu.

“Foram três anos de intensa relação. Quanto mais nos conhecíamos mais apaixonados ficávamos. E o que mais me impressionava era a aceitação do absorver sua riqueza cultural, pessoal. Nunca percebi um olhar ou desconfiança por ser gringo.”

– O tempo passou rápido e meu contrato se esgotava. Comecei a ficar aflito. Reiniciei uma negociação para ampliar minha permanência. Consegui mais um ano. E vivi aqueles doze meses como se fossem os últimos de minha vida. Nesse tempo, eu já me mudara para o morro. Ficar perto da família e amigos da Conceição que eram meus, agora.

“As tardes sempre a roda de samba. Despertou-me a vontade de ser letrista. O que precisava era de ajuda para corrigir meus erros de português. Mas meus compromissos na Espanha exigiam meu retorno. E foi assim, que numa noite de samba aventurei uma composição que pedia a Conceição que fosse embora comigo.”

“A cerveja rolou, churrasquinho na brasa, e bandolim chorava de alegria. Tudo parecia dando certo. O coro afinadíssimo cantava ‘Viver e não ter a vergonha de ser feliz. Cantar e cantar e cantar a beleza de ser um eterno aprendiz’. Não acreditava que as garrafas de cerveja que lotavam a mesa não faziam efeito naquelas vozes do samba de Gonzaguinha.”

– Mal o samba dava sinal de acabar, já outra voz se erguia e cantava: “Eu nasci com o samba, no samba me criei, e do danado do samba, nunca me separei”. Eita! Dorival Caymmi. Sambista das antigas. Uma noite que jamais esqueceria.

“No dia seguinte, tudo pronto para o embarque, de ressaca da despedi. Esperei Conceição, mas ela não foi. Entrei no avião escondendo as lágrimas e, cantarolando baixinho “Você era a mais bonita das cabrochas dessa ala… Você era a favorita onde eu era mestre-sala. hoje a gente nem se fala, mas a festa continua. Suas noites são de gala, nosso samba ainda é na rua. Hoje o samba saiu lá lá laia, procurando você. Quem te viu, quem te vê. Quem não a conhece não pode mais ver pra crer. Quem jamais esquece não pode reconhecer”.

– Ao chegar em Salamanca fui recebido pelos velhos amigos. A diferença de acolhimento era gritante. Todos alegres, polidos e já com planos e agendas comprometidas. Foram três meses de tristeza no cumprimento dos contratos. A cada vez que regia uma orquestra, sentia que faltava um tempero.

“A plateia acostumada ao clássico reagiu quando em um momento ousei um batuque numa sequencia de nota. Percebi que a alguns agradou, mas os conservadores detestaram. Foi quando tomei a decisão de abandonar tudo. E voltar ao Brasil. Voltei. Em segredo, subi o morro. Justamente na hora da roda de samba. E qual não foi a surpresa e a alegria ao ser recebido. Essa gente tem um dom que não encontrei em nenhum outro lugar.”

– Na mesa um bilhete me foi entregue com a letra de Paulinho da Viola – “Meu coração tem mania de amor, amor não é fácil de achar”. Pensei que tinham lido meu coração; todavia, as garrafas continuaram a encher a mesa e o samba “rolava”. “Foi um Rio que passou em minha vida, e meu coração se deixou levar…”.

“Eu podia jurar que a seleção de músicas era encomendada para a minha volta. E sabe como é no Morro, nada fica escondido. Não demorou muito Conceição foi avisada, e correndo para a laje atirou-se nos meus braços. sem nenhum pudor. E foi assim que nós nos reencontramos. Construímos essa pousada onde acolhemos quem quer viver o samba.”

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