Interpretado sob a ótica religiosa e banhado pelo véu do misticismo, A Lei do Cnut deixa de ser apenas um romance histórico para se tornar uma grande alegoria espiritual sobre o homem, o poder e a fronteira onde termina a vontade humana e começa o sopro do sagrado.
No coração da trama, a figura de Cnut — rei, guerreiro, comandante das marés e dos destinos — transforma-se em arquétipo do ser humano que acredita, ainda que por instantes, dominar as forças invisíveis que regem o mundo. Sua célebre tentativa de ordenar que o mar recue, um gesto que atravessa séculos como símbolo da vaidade dos poderosos, ganha aqui a densidade de um rito iniciático.
Quando Cnut se coloca diante das águas e ergue sua voz contra o oceano, ele não fala apenas como soberano político; fala como o ser humano que busca, desesperadamente, compreender seu lugar na criação. A maré que avança não é inimiga: é mensageira. Ela traz o lembrete ancestral de que o divino não se curva ao terrestre, e que até mesmo os mais fortes dobram o joelho diante do invisível.
O mar, nessa leitura mística, torna-se o próprio inconsciente coletivo, o ventre primordial da existência, onde Deus sussurra em ondas. Cnut, ao perceber sua impotência diante daquele avanço eterno, vive uma espécie de epifania — reconhecimento da pequenez humana perante o ilimitado.
O romance mostra que a verdadeira lei, apesar do título, não é a de Cnut. A verdadeira lei é a que antecede e ultrapassa todos os decretos humanos: a lei do ciclo, do tempo, da água que vem e vai desde antes da primeira palavra pronunciada pela humanidade.
Essa lei maior, invisível, pode ser interpretada como a vontade divina, que dita movimentos silenciosos e implacáveis, mas nunca cruéis. Ela apenas é. Cnut aprende — e o leitor com ele — que a autoridade humana é sempre delegada, nunca absoluta. Não há coroa que pese mais do que o dedo de Deus tocando a linha do horizonte.
Na simbologia espiritual, há dois tipos de poder: o que se exerce e o que se abandona. O personagem, ao reconhecer que seu comando não tem força sobre as marés, não fracassa — desperta. A derrota de Cnut, lida misticamente, é na verdade seu batismo.
Ele deixa de ser senhor para tornar-se discípulo; deixa a ilusão de onipotência para abraçar a sabedoria da humildade. É como se vivesse, ali mesmo na praia, seu próprio sermão da montanha íntimo.
The Law of Cnut, quando vista por lentes espirituais, convida à reflexão sobre uma das grandes questões religiosas da humanidade: onde termina o livre-arbítrio e onde começa o destino?
Cnut tenta esticar o braço onde o humano não alcança, apenas para descobrir que a espiritualidade não é o poder de mandar, mas a coragem de escutar. O mar ensina, não obedece.
E é nesse ponto que o romance ganha sua dimensão mística: em vez de mostrar um monarca que falha, revela um homem que, ao não conseguir deter as águas, finalmente compreende o silêncio de Deus.
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Maria Elisa Albuquerque, filósofa, tem dedicado suas longas horas vagas como aposentada, para refletir mais sobre os atos da humanidade
