Notibras

Um dia, alguém dirá que ao irmos embora, deixamos histórias a ser contadas

Havíamos deixado a tia Ismália no Cemitério do Caju. Viveu sozinha por muitos anos, coitada, desde a morte do marido. Eu mesmo pouco havia convivido com tio Jorge, lembro apenas de relance, na infância, daquela figura lusitana baixinha e gorda, que usava um boné cinza e era divertido. Dirigia um Fusca azul.

O casal não teve filhos. Mas amou generosamente os sobrinhos e sobrinhos-netos. Eu me encaixo na última categoria, sou o caçula dos sobrinhos-netos. Os mais velhos que eu aproveitaram mais, sem dúvida. Eu convivi com ela mais velhinha, já sem o sítio de Itaguaí, vendido porque ela não se animava de cuidar na ausência de tio Jorge. Estive lá umas duas vezes com meu pai, ajudando a recolher algumas coisas, antes de ele ser passado de porteira fechada ao novo dono.

Tia Ismália era a representante de uma raça extinta. Derradeiro elo entre nós e gente nossa que só conhecemos através dos relatos dos mais velhos. Ela era irmã de meu avô paterno, a que mais tempo viveu dentre os cinco filhos de meus bisavós.

Exercera alguma função no serviço público, a qual eu nunca entendi direito. Certamente foi no Tribunal de Contas, e se aposentou por tempo de serviço. Ganhava bem, era saudável, independente, mas o tempo chegou cobrando sua conta e, após uma breve pneumonia, lá se foi titia.

Fomos encarregados de tratar do inventário, ver o que tinha dentro do apartamento dela. Os herdeiros iam decidir se o imóvel seria vendido, ou alugado. Em ambas as hipóteses, restaria uma ninharia para cada um dos sucessores. Até pensaria em comprá-lo para mim, se tivesse meios.

Confesso que, ao receber a chave do apartamento da rua Conde de Bonfim, na Tijuca, tremi de emoção. Fui para lá numa tarde de sábado. Senti-me um intruso, pois iria abrir seus armários, vasculhar suas gavetas, e ficara com a missão de me desfazer do que não tivesse valor econômico, e separar o que pudesse ser vendido para um antiquário, por exemplo.

A casa de minha tia parecia haver parado no tempo. O telefone de baquelite laranja sobre um aparador com espelho, a cozinha de azulejos azuis, o grande sofá de couro preto com um velho violão de cordas rompidas apoiado, um rádio valvulado certamente dos anos 50… A única coisa que destoava naquele ambiente era a TV de led, moderna, que os sobrinhos haviam dado para ela de Natal há alguns anos, quando o sinal da TV analógica foi desativado. Foi um custo convencê-la de que a nova TV não tinha botões, era tudo no controle remoto.

Encontrei, numa estante do quarto, um grande álbum de retratos, guardado perto de uma caixa repleta de fotografias soltas. Várias imagens tinham referências, nomes, datas, e se tratavam de antepassados meus, ou familiares do tio Jorge.

Uma gente de feições ora duras, ora meigas, em que reconheci muitos traços de meus parentes vivos – acredito que o fruto nunca cai distante da árvore.

Como terá sido aquela gente antiga, que, de certa maneira, ainda seguia em nós, no formato de nossos narizes, olhos, dedos, e mesmo na nossa maneira de ser?

Caso ninguém se opusesse, eu guardaria aquelas fotografias comigo.

Chamou-me a atenção, em especial, uma daquelas fotos. Era uma mulher antiga, de uns cinquenta e tantos anos, talvez. A julgar por seu traje, passava por um período de luto pesado, ou tratava-se apenas de recato. Não tinha nenhum indicativo da pessoa retratada no grosso papel cartonado que dava sustentação à imagem. Quem seria? Seus traços não me eram de todo estranhos.

Achei-a linda e separei a foto. Iria consultar os mais velhos da família em busca de alguma pista.

A desmontagem do apartamento de tia Ismália foi trabalho de algumas semanas, que consumiu energia e causou-me uma bela crise de rinite alérgica. Seus móveis foram praticamente todos vendidos para uma empresa de cenografia que achamos na internet, e apuramos um bom valor. Objetos pessoais, como roupas de vestir e de cama, foram doadas para uma instituição. Os aparelhos domésticos acabaram nas mãos de um antiquário que muito se interessou pela antiga vitrola, uma batedeira vermelha e até a geladeira Kelvinator, cujo puxador da porta lembrava o desenho de uma coluna do Palácio do Planalto.

Estranhamente, conforme os cômodos do três quartos com suíte iam ficando vazios, eu me sentia ainda mais próximo da tia-avó, da qual, nos últimos anos, a vida corrida, o trabalho, os afazeres, havia me distanciado. Percebi que a amara sempre, e devia ter me esforçado para estar mais presente.

Indaguei a vários parentes quem teria sido aquela figura no retrato. Ninguém conseguiu me dizer ao certo. Minha bisavó certamente não era, pois em nada se parecia com as imagens dela, em várias fases da vida, com a respectiva identificação. Talvez fosse a mãe do tio Jorge? Uma parenta dele, de Portugal? Não conseguimos apurar.

Tivesse eu feito a visita que devia a tia Ismália alguns meses antes, contra a qual sempre apareceram desculpas, poderia ter revirado aquela caixa de retratos e ela me explicaria a origem da fotografia. Certamente ela saberia. E viriam histórias, fofocas de família, relatos sobre as manias e o jeito daquela gente há tanto adormecida. Parentes guardados no mesmo Cemitério do Caju.

A imagem da mulher misteriosa seguiu comigo, bem como suas congêneres. Ainda me pego olhando para ela e imaginando histórias. Teria ela sido bem-humorada? Que pessoas amou? Qual era sua comida preferida? Com que dores haverá partido dessa vida para o nunca mais?

Pus-me a meditar sobre esse “nunca mais”. Ele chegaria, sem dúvida, também para mim. Detestaria ser esquecido completamente, a ponto de nenhum parente saber meu nome, sequer imaginar minha ligação com a família vendo um velho álbum de fotografias.

Desde então, sigo convicto de que o sentido da vida é estar mais nos outros do que em mim mesmo, esperando que, um dia, os outros contem para sua descendência as pequenas histórias de que fomos protagonistas.

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Daniel Marchi é autor de A Verdade nos Seres, livro de poemas que pode ser adquirido diretamente através do e-mail danielmarchiadv@gmail.com

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