Ingrid, jovem de 22 anos, morava em uma cidadezinha da Nova Inglaterra. Levava uma vida pacata, rotineira. Trabalhava na biblioteca local, como contadora de histórias para crianças de até seis anos; tinha algumas amigas, poucas, com quem crescera; algumas vezes, aceitava o convite de um carinha para sair, comer um hambúrguer, ir ao cinema ou algo semelhante. O problema é que todos se conheciam desde sempre, e engatar um namoro ali parecia algo vagamente incestuoso, como um enrosco entre primos. Além disso, os jovens solteiros fugiam das moças casadoiras como o diabo foge da cruz, temendo que um envolvimento os impedisse de tentar um futuro melhor na cidade grande. Se conhecesse a obra de Carlos Drummond de Andrade, ela poderia dizer, como o poeta brasileiro em Cidadezinha qualquer, “Eta vida besta, meu Deus”. Como não conhecia – nascera nos Estados Unidos, não lia português – explodia ocasionalmente: “Não é possível essa pasmaceira! A vida tem que me oferecer mais do que isso!”
A crença de que o universo lhe reservava algo mais excitante era alimentada por suas origens. Ingrid descendia, em linha direta, de uma das mulheres enforcadas no final do século XVII no núcleo costeiro de Salém, em Massachusetts, Nova Inglaterra. Professora formada, a jovem conhecia o contexto da brutal perseguição, o temor de uma sociedade patriarcal ao desconhecido e, em especial, o medo dos poderes misteriosos das mulheres. Havia muitas parteiras entre as vítimas, elas lidavam com a menstruação, o sangue, a urina e as fezes no nascimento, a eliminação da placenta… Os homens da elite de Salém tremiam de nojo ao pensar nessas coisas. E também de medo desses domínios reservados ao sexo feminino.
Mas havia certos questionamentos que Ingrid guardava apenas para si mesma. Sem dúvida, nenhuma mulher merecia aquele gênero de morte, ser enforcada para apaziguar a insegurança dos homens. Sem dúvida, todas eram vítimas. Mas inocentes da acusação de bruxaria? Ora, havia bruxas entre elas. Ou, pelo menos, uma: a tataravó de Ingrid.
Não era uma simples convicção que levava a jovem a contrariar as opiniões da maioria dos historiadores. Era uma evidência documental, encontrada uns quinze dias antes, no sótão de sua casa. Para fugir ao tédio de sua existência modorrenta, a moça fingia arrumar os objetos do sótão, tocando-os mecanicamente, quando um baú chamou sua atenção. Era pequeno e estava fechado, a fechadura corroída pelo passar dos anos. Ingrid tentou abri-lo, não conseguiu; pegou uma barra de ferro e bateu com força na fechadura, que cedeu.
No interior do baú havia folhas soltas, preenchidas à mão. Não tinha capa, muito menos um título sugestivo, na linha “O livro das bruxas” ou “Meu livro de feitiçaria”, nada disso; apenas, na folha inicial, a assinatura da antepassada de Ingrid e, logo abaixo, as palavras Salém, 1692. A folha fora escrita, portanto, um ano antes do início dos julgamentos por bruxaria, que se estenderam de fevereiro de 1693 a maio de 1694. Fazia sentido supor que as demais anotações tivessem sido feitas na mesma ocasião, ou antes disso.
A moça levou uns sete dias para se familiarizar com o inglês arcaico, do século XVII, e com a escrita cursiva, cheia de erros de ortografia, de uma mulher que certamente não tinha muita instrução. Mas, afinal, a leitura avançou.
Ingrid estava fascinada. Devorou folhas que pareciam voar diante de seus olhos e queimar seus dedos, com títulos do tipo “Invocação do diabo” ou “Matar um inimigo”. Depois, relutante, afastou-as; magia negra, pesada, não era o que buscava. Jovem solteira, insatisfeita com essa situação, dedicou uma atenção toda especial aos sortilégios para conquistar um amor.
E era enorme a variedade! Ela teve de abrir mão de feitiços bem promissores simplesmente por não reconhecer a planta mencionada no manuscrito (designações populares mudam com o passar dos séculos). Outros eram quase idênticos a simpatias de sua época, que toda moça conhecia, do tipo coar o café na calcinha e oferecê-lo ao amado. Mas alguns, digamos, eram mais mágicos, e envolviam dançar nua em uma clareira, ao luar, murmurando vezes seguidas o nome daquele que se pretendia conquistar.
Foi o que Ingrid decidiu fazer – tão logo surgisse, em sua vida, alguém digno de ser enfeitiçado. Pois, a seus olhos exigentes, os rapazes que conhecia desde criancinha eram um bando de imbecis.
Foi então que Josh voltou à cidadezinha, para visitar os pais. Um ano mais velho que Ingrid, cursava Medicina em uma universidade de renome e tinha excelentes perspectivas profissionais. Todas as jovens da cidade o perseguiram, porém Ingrid fez mais do que isso: dançou nua em uma clareira, murmurando sem parar, “Josh, Josh, meu Josh, você está se apaixonando por mim, Josh, meu querido Josh!”
Fosse pela magia, fosse pela confiança recém-adquirida que o rosto de Ingrid passara a irradiar, o fato é que o rapaz se interessou por ela. Convidou-a para sair, estacionou em uma clareira – a mesma em que Ingrid dançara nua, noites antes, em louvor da deusa Lua – e trocaram beijos tórridos.
No fundo, Josh era um puritano – afinal, a Nova Inglaterra foi colonizada por puritanos ingleses. Nem sabia como sugerir uma transa, não antes de ficarem noivos, pelo menos. Assim, entregou-se ao amor recém-encontrado, como se fosse uma mosquinha na teia da descendente de bruxa. Em pouco tempo ficaram noivos, descobriram que o sexo entre eles era uma delícia, em pouco tempo casaram.
Oito anos depois, Josh e Ingrid moram em uma grande cidade da Nova Inglaterra. Têm uma filha de sete anos, Anne. São felizes, Ingrid, totalmente, Josh, um pouco menos, por vezes seu rosto assume a expressão perplexa de quem não sabe como se viu às voltas tão cedo com uma família. A menina por sua vez, se interessa por leituras e esportes. E, deve-se acrescentar, por outras coisinhas.
Anne era apaixonada por soccer, designação do futebol com a bola redonda nos Estados Unidos. Também pudera, a seleção de futebol feminino do país colecionava troféus. Anne jogava no ataque, mas não estava no time principal. Era a primeira reserva, a titular era uma garota de oito anos, mais forte e mais hábil do que ela.
A equipe de Anne ia participar de um torneio interescolar, e ela queria desesperadamente entrar em campo e marcar muitos gols. Correu para os braços da mãe em busca de consolo, e esta a aconselhou a se concentrar e pedir o que desejava à deusa.
– Não a Deus Pai – insistiu Ingrid. – À deusa. Não custa tentar.
A menina obedeceu.
Fosse por magia, fosse por reviravoltas do destino, três dias antes do jogo a titular do ataque sofreu uma queda e torceu o pé. Nada muito grave, só o suficiente para Anne substituí-la no jogo dos sonhos.
