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Uma cerveja, um sogro e um acerto de contas com o tempo

Fim de tarde, numa rua agitada da zona sul do Rio de Janeiro, Érico estava aguardando, na sala de espera, a sessão de terapia que há alguns meses frequentava semanalmente.

O espaço era um consultório modesto, quadros de paisagens tranquilas enfeitavam as paredes. A luz suave que vinha pela janela, pouco antes do pôr do sol, iluminava o rosto de sua terapeuta, Laura.

A cada encontro, Érico trazia nas conversas terapêuticas situações de sua rotina. A terapeuta conversava sobre seu passado e histórias de outrora, mas o foco era no momento presente, a vida hoje. O que ele fazia, quem eram seus amigos, os personagens de sua família, seus horizontes e desejos de agora. Embora acreditasse que as experiências interessantes e alegres fossem coisas do passado, em seus encontros com Laura percebia que sua vida não era tão parada e sem novidades como ele sentia.

— Oi, Érico, como foi a semana?

— Laura, esta semana não fiz nada interessante, nem meus filmes ando com paciência pra assistir, parece que faltam novidades, sempre os mesmos temas, as mesmas histórias…

— Às vezes você não percebe as coisas legais que faz durante sua semana. Lembra daquela vez que foi no hortifruti e reencontrou um amigo de anos? É no dia a dia que coisas legais acontecem. Me conta como foi a visita da sua filha, genro e netinha no domingo passado. Você estava na expectativa, então, como foi?

— Eita, que já tinha me esquecido disso… foi um fiasco! Ultimamente, sempre que nos encontramos, vejo minha filha maltratando o marido. Sempre impaciente, dando patadas nele por qualquer coisa. Você acredita que ele estava lá, escolhendo o cardápio, e ela falou: “Anda logo, até pra escolher uma comida é difícil!” Ficamos todos com cara de tacho na mesa e ele, sem nada dizer, escolheu algo qualquer e ficou murcho o almoço todo. Eu a vejo maltratando-o sempre, às vezes olho para minha filha e lembro da mãe dela… vendo-a sobrecarregada com o trabalho, família, vida… ela é a força da casa, o centro de tudo! Percebo que ela está de saco cheio, que está muito infeliz. Descuidou-se muito nos últimos anos, parece mais velha do que é! Sempre cansada, estressada… É muito doloroso para um pai ver sua filha viver dessa forma. Penso em chamar ela para conversar e dizer que não é assim que se deve tratar seu marido, vão acabar se separando, e tem a pequena crescendo e vendo isso tudo.

Laura ouvia atentamente, observando como Érico estava receptivo, e pontuou:

— O que a vida de sua filha hoje te faz lembrar da sua esposa, Érico?

Ele, um tanto sem jeito, relatou que, a seu ver, o genro é o reflexo do homem que um dia ele fora. Amava sua família, porém era pouco participativo nas dificuldades do cotidiano e compromissos do lar, não cumpria os combinados, colaborava pouco, o que afetava diretamente a sua esposa, sobrecarregando-a.

— Eu poderia ter sido muito melhor para minha esposa, para minha família, ter sido ativamente presente. Quando ela me cobrava coisas que nem deveriam ser cobradas de um pai de família, eu desdenhava de suas queixas, me afastava dela… Fui egoísta, não era parceiro dentro de casa. Sempre tinha alguma coisa pra fazer: lições da escola, casa bagunçada, mercado… Ela sempre chamava minha atenção, ralhava, as discussões tornaram-se frequentes… Depois de um tempo parou de questionar e me deixou de lado. Ela merecia muito mais do que eu ofereci! Hoje me sinto culpado, não tinha a maturidade e o conhecimento de hoje.

O relato de Érico sobre uma vida, que já era passada, pulsava dentro da história de sua filha no presente. A relação dela com o marido, marcada por farpas e desentendimentos, eram vistas e sentidas pelo pai. Ele sentia tristeza de ver que o mesmo ciclo de dor, que sua esposa viveu com ele, se repetia na vida de sua filha.

— É, Érico, quando os cuidados e emergências do lar caem em cima de uma única pessoa, a cabeça fica a mil e o corpo não acompanha o estresse. Essa carga mental drena o desejo e admiração pelo outro. Quando o cotidiano pesa em um só, a admiração e o carinho diminuem. Se o parceiro que escolhemos para dividir a vida se torna um dependente a mais, sem a necessidade de ser, a vida vira fadiga, sendo inevitável as mágoas na relação. Carregar o teto do nosso lar na cabeça sem cooperação, quando não estamos sozinhos, faz a vida a dois ser injusta, o preço fica alto.

Ao sair da sessão, estava quente, um início de noite agradável. Érico, não queria ir para casa tão cedo. Ligou para seu genro:

— Meu querido, sei que já, já você deve sair do trabalho. Aceita doar uma hora do seu tempo, tomar uma cervejinha e bater um papo com seu velho sogro?

…………………….

Fabiana Saka (@fabianasaka), escritora e psicóloga clínica no Rio de Janeiro, é autora de “As Aventuras de Daniel – não tenha medo de si mesmo” (Ed. Ases da Literatura, 2024).

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