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Uma história do além

Por mais estranho que possa parecer, aconteceu desse jeito ou, ao menos, é como me recordo. Chamava-se Inácio e, apesar de carregar dos Santos no sobrenome, até onde me consta, não era do tipo que frequentava igrejas. Arrisco a dizer que não professava qualquer fé e, não duvido, era ateu. Agnóstico, então, para não ferir os ouvidos mais conservadores.

O fato é que Inácio, assim que chegou ao lar, doce lar… Bem, não era tão doce assim, pois andava às turras com a mulher, Rita. Tudo por causa de um caso extraconjugal. Verdade seja dita, não apenas um, mas diversos. Quer dizer, ao menos cinco confirmados. E todos de autoria da adúltera.

O problema é que Inácio não tinha ímpeto de abandonar a amada. Coisas do coração, que a razão não consegue alcançar. E não adianta algum moralista de plantão levantar questionamentos, que todos serão chutados para escanteio. Coisas do coração, meu amigo. Coisas do coração.

Madrugada de um domingo qualquer, que não diferenciava dos demais, a não ser por um motivo. Inácio, após relaxar no sofá da sala ao lado da Rita, assistindo a uma série tragicômica, algo que ambos adoravam. Como o sujeito gostava de dizer, a vida é carregada de tragédia com pitadas simbólicas de humor. E a esposa parecia concordar, pois sempre fazia questão de sorrir aquele sorriso que tornava seus lábios ainda mais lascivos. Talvez fosse mero cacoete.

Empanturrados de telinha e pipoca, os dois foram dormir. Ela, cuja insônia sempre lhe fazia sala, ligou o abajur do seu lado da cama e pegou seu livro de cabeceira daquele tempo: “A verdade nos seres”, de Daniel Marchi. Poesia era algo que conseguia redimir um pouco da sua culpa ou, não raro, exacerbá-la.

Inácio, que dormia em qualquer canto. mal baixou as pestanas, dormiu como um anjo e, quando acordou, estava morto. A princípio nem se deu conta da sua nova condição, até que notou seu corpo inerte, encolhido que nem bebê, ao lado da mulher, que parecia encantada com a leitura.

O fantasma, espírito ou qualquer coisa que o valha, curioso que estava, se aproximou para tentar enxergar qual o poema que acabara de fazer a amada suspirar. Mal chegou perto, um forte espirro da mulher o jogou contra a parede, fazendo com que ele a atravessasse e caísse sentado no sofá da sala.

Inácio sentiu o cheiro de pipoca. Surpreso, ele acabara de descobrir que mortos conseguem sentir odores. Não tardou, ouviu um som conhecido. Rita acabara de soltar gases. Aquele fedor, que em vida sempre o incomodou, estranhamente o atraía naquele instante. Teriam os defuntos atração por cheiros duvidosos? Ele gargalhou, mas logo tapou a boca.

Seria Rita capaz de escutá-lo? Ele a chamou, chamou de novo e outra vez mais. Nada. Suspirou e, do nada, sentiu vontade de assobiar. Ou Rita conseguia ouvi-lo ou, então, algo a compeliu a fazer cafuné no marido. Engraçado foi que Inácio sentiu um forte arrepio percorrer seu ser imaterial.

Rita depositou o livro sobre a cabeceira, apagou a luz, virou o corpo, abraçou o marido e o beijou na face. Adormeceu de conchinha.

Dois dias depois, os vizinhos, incomodados com o forte fedor, chamaram o corpo de bombeiros. Mal chegaram, arrombaram a porta do apartamento, onde encontraram os corpos do casal abraçados.

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Eduardo Martínez é autor do livro ’57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’ (Vencedor do Prêmio Literário Clarice Lispector – 2025 na categoria livro de contos).

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