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Vesga e corcunda, a fêmea vira deusa e deixa Léo comendo poeira

Leopoldo, o Leo, 50 anos, tinha duas residências: um estúdio (antes seria chamado de “quitinete”), no centro urbano, e uma casinha isolada na periferia, na entrada de um bosque. Não se tratava de uma casa de campo, longe disso. Era quase um casebre, mas um apêndice indispensável a sua vida sexual.

É que Leo tinha uma perversão, uma tara – era portador de uma parafilia, em linguagem menos carregada de preconceitos e julgamentos: só conseguia sentir verdadeiramente prazer quando estava nos braços de uma mulher feia pra dedeu.

Quanto mais feia melhor. Não chegava às proporções de um caso de teratofilia, a atração sexual por monstros ou criaturas deformadas. Quer dizer, a parceira não precisava ser uma versão feminina do Minotauro, mas, se tivesse uma corcundinha de zebu, ajudava.

Daí o casebre/garçonnière: nunca que ele ia entrar no prédio em que morava junto aos tribufus que levava pra cama. Se o fizesse, a zombaria no dia seguinte seria ensurdecedora, insuportável. Nessas ocasiões, ele arrastava a montrenga pro seu carro, seguia pro casebre e ali se entregava ao prazer. Não imaginem que depois a assassinava e a enterrava no bosque; bem-comportado, Leo a levava de volta pra cidade, dava-lhe uma boa grana e seguia para o pequeno estúdio, onde dormia o sono dos justos.

Certa noite, ele caminhava sem destino pelas ruas quando avistou a sua princesa. Era horrível, a mulher mais feia que jamais havia visto.

Vesga, corcunda, suja e coberta de andrajos: a fêmea de seus sonhos. Não era uma moradora de rua, ou uma sem-teto, termos politicamente corretos, ou quase. Era uma mendiga das cascudas, com toda a carga de preconceito que a palavra comportava. Mas pra ele não, era a sua deusa inesquecível.

Aproximou-se e propôs a transa em troca de uma nota preta. A mulher exigiu ver o dinheiro, ele o exibiu e a fez embarcar no carro. Ele dirigiu em silêncio, emocionado demais; a mendiga tampouco falou.

Na casinha, ele a beijou e começou a arrancar-lhe o vestido todo rasgado. E as transformações se iniciaram.

A cada beijo, a cada trapo arrancado e jogado no chão, ela ficava mais linda; os olhos se endireitaram, a bossa nas costas desapareceu, a casca de sujeira sumiu como por encanto. Todas essas deformidades eram transplantadas para o corpo de Leo, que ficava mais decrépito a olhos vistos. Era como se o universo, ao favorecer o surgimento de uma Vênus, exigisse, como contrapartida, a materialização de um ser de pesadelo, um gêmeo do monstruoso Caliban, personagem de William Shakespeare na peça A tempestade.

Com o olhar semicerrado, vidrado de tesão, Leo não percebeu a dupla transformação. Quando a notou e tentou contê-la, era demasiado tarde, o processo era irreversível. Caiu por terra, alquebrado, enquanto a linda mulher inspecionava o corpo deslumbrante, recém-recuperado.

(A essa altura, outro contista poderia mencionar o castigo imposto séculos antes por um feiticeiro malvado, que cessaria apenas quando ela fosse desejada apesar de sua feiura; eu, porém, atenho-me aos fatos. A verdade é que não sei por que diabos houve a transformação, só sei que foi assim.)

Depois de olhar-se em um espelho, ela sorriu, satisfeita, e falou:

– Você gosta de fazer com mulher feia, né, taradão? Eu não, meus machos têm de ser no mínimo atraentes, e você tá um bagaço!

Riu e continuou:

– Agora vou pegar o dinheiro que você tiver, preciso comprar umas roupícias, umas calcinhas rendadas… Ah, e pego seu carro pra voltar à cidade.

Pegou o dinheiro, vestiu uma camisa de mangas compridas de Leo (não ia sair nua) e foi embora, deixando-o no chão, sujo e enfraquecido, tentando recuperar forças pra deixar o casebre.

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