O último acordo ortográfico da língua portuguesa já tem mais de uma década, mas aqui estou eu, firme na negação, como quem se recusa a aceitar que a TV Globinho acabou ou que o MSN não vai voltar.
Sei que a proposta era nobre, bonita, quase diplomática: unificar a escrita da língua portuguesa e assim facilitar a comunicação entre os países da CPLP. Essa sigla elegante parece nome de colégio técnico, mas significa Comunidade dos Países de Língua Portuguesa e reúne Brasil, Portugal, Angola, Moçambique e outros lugares onde também se briga com o hífen.
Na oralidade, claro, ninguém ousou tocar. Impossível mesmo. Se nem entre o carioca e o gaúcho a paz fonética reina, imagine entre um português de Lisboa e um brasileiro do Recife.
Incorporamos as letras K, W e Y ao alfabeto como quem abre a porta da casa para um gringo perdido: “entra, senta, aceita um cafezinho?” Achei simpático. Somos um povo hospitaleiro. Além disso, agora posso escrever ketchup com respaldo institucional e a mesma tranquilidade com que o adiciono na pizza.
Também não me oponho ao fim do circunflexo em palavras como enjoo e leem. Aquilo era um espirro de acento que ninguém sentia falta. Abençoo o corte. Menos um motivo pra o professor de português corrigir minha redação com uma caneta vermelha e a voz da decepção.
Mas, vejam bem, há limites. E o meu limite é ideia. Sem acento. IDEIA. Uma palavra tão aberta, tão indefesa, largada ali no meio da frase, sem agudo pra proteger. E a jiboia? O que dizer de uma cobra que perdeu até o acento e agora parece um ser indefeso? A verdade é que sem o acento, a ideia perde a identidade, e a jiboia, sua força constritora.
Eu defendo que façamos uma assembleia – ou uma sessão espírita – para resgatar esses acentos abandonados. Quem sabe invocando o espírito do professor Bechara, da dona Norma Culta ou do primeiro gramático que teve a ousadia de escrever ideia com acento e dormir em paz naquela noite.
Mas o que mais me desestabiliza, o que tira o chão da minha gramática emocional, é o fim do acento diferencial em palavras homógrafas. Quando eu leio “para”, meu cérebro trava. Ele quer que eu decida, sozinha, se aquilo é um verbo no presente ou uma preposição. Uma missão ingrata. Sinto falta do velho “pára”, com seu acento agudo dizendo: “calma, aqui é verbo, respira”.
E então, chega a dor final: o trema. Ah, o trema. Aquele pontinho duplo que parecia um olhar cúmplice em cima do u. A linguística decretou sua morte nas palavras que pertencem tipicamente à língua portuguesa, mas o meu coração ainda guarda luto. Porque a linguiça sem trema perdeu um pouco do sabor. Cinquenta sem trema é um preço mais caro. Sem trema o pinguim escorrega no gelo da indiferença ortográfica. O trema era um charme, um pequeno detalhe que nos dizia que naquela palavra a letra u deveria ser pronunciada.
Enfim, dizem que a língua é viva. Mas às vezes, confesso, parece que está vivendo num asilo, esquecendo dos velhos amigos e adotando hábitos novos que ninguém pediu. Eu sigo aqui, tropeçando em “voo”, desconfiando de “para” e fazendo uma prece silenciosa sempre que vejo uma “linguiça” órfã.
Saudade, trema. Você era só dois pontinhos, mas fazia toda a diferença.
