Fernando havia morado quase quatro anos na França e em Portugal, às voltas com uma tese de doutorado que jamais terminou. Voltou do Velho Mundo um imbecilzinho europeizado, destinado a ir pela estrada da vida de escorregadela em escorregadela, de gaffe en gaffe.
O sintoma inicial veio logo após o desembarque em solo tupiniquim. Decidiu jantar fora e, bien sûr, pediu serviço completo, à francesa: entrada, prato principal, queijo, sobremesa, um digestivo e café. E, claro, um bom vinho. Levou um susto ao ver a quantidade de comida que sobrou: as porções brazucas eram duas vezes maiores que as francesas. E duas vezes mais caras, teve um susto ainda maior ao receber a conta pra lá de salgada. Sem falar no preço do vinho, um absurdo!
O choque com a realidade dos preços fez em pedaços seu projeto de flanar pela vida, com um pé na academia e outro no mundo editorial, onde sempre havia trabalhado. Correu para a redação do jornal que deixara quatro anos antes, para rever os amigos e, sobretudo, descolar um frila e, se possível, um emprego de carteira assinada.
Foi no jornal, conversando com o editor de Cultura, a “sua” editoria, que pintou o segundo sintoma de desraizamento. No meio do papo, ele a apresentou a uma jornalista da editoria, que lhe perguntou, gentilmente, se já sabia onde iria morar.
Ele podia ter respondido: “Ainda não sei”, ou “Provavelmente na zona oeste, eu morava em Pinheiros”. Mas não, o pavão viajado abriu a cauda e fuzilou:
– Morei em Botucatu [sua cidade natal], em São Paulo, em Paris e em Lisboa. Vai ser em uma dessas quatro cidades.
Silêncio incômodo. A jornalista afastou-se, alegando um compromisso, e o editor tratou de despachá-lo na primeira oportunidade.
O sintoma mais grave ocorreu dias depois, quando foi almoçar com a turma do jornal (a caça de frilas exige sacrifícios). Lá pelas tantas, alguém pediu um Montblanc. Fernando desembestou:
– Ah, Montblanc! Minha sobremesa predileta. Gosto de ver o chantili escorrendo sur la crème de marron – percebeu pelos rostos que alguns, tadinhos, não falavam francês e traduziu – sobre o creme de castanha. E o sabor é simplesmente di-vi-no!
Silêncio gelado. Ele não notou, ou percebeu e não deu a mínima para as reações da tigrada, e já se preparava para falar dos vendedores de castanhas, às margens do Sena, tão pitorescos, quando o garçom chegou com o Montblanc pedido. Era um maço de cigarro rebenta-peito, um dos mais baratos do mercado. Depois disso, a face em chamas, Fernando não teve coragem de abrir a boca, obrigado a reunir forças para enfrentar o desdém amplo, geral e irrestrito.
Fernando poderia ter continuado assim pelos séculos dos séculos, amém, tropicando de gafe em gafe, não fosse uma canção. Foi salvo pelo Rancho da goiabada, composição de Aldir Blanc e João Bosco, na poderosa interpretação de Elis Regina. A cada verso, os “palhaços, marcianos, canibais, lírios, pirados” o envolviam. Sentiu que alguma coisa se quebrava dentro dele: a couraça europeia, precariamente envergada. O sofisticado creme de castanha com chantili deu lugar à boa e velha goiabada cascão, com muito queijo. Não, a Europa não se curvou ante o Brasil, mas algo poderoso reconquistou o misto de acadêmico e jornalista. Não a pátria, nem mesmo a mátria, mas o sofrido povo brasileiro, que faz qualquer coisa pra espantar a tristeza, pra poder suportar. Um povo simples, com seus pais-de-santo, paus-de-arara, passistas, pingentes, balconistas e boias-frias, que se reinstalou, feito um posseiro, em sua mente e em seu coração.
