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Após Covid, novo vírus pode vir com morcegos

Com 70 milhões de habitantes, a Tailândia, vizinha da China, conseguiu conter o novo coronavírus que matou gente em todo o mundo. Os números lá são um alento: até o início de janeiro, apenas 9 mil casos de pessoas infectadas e 65 mortos.

Isso tem uma explicação: com o novo ano asiático (de 2020), quando o foco era Wuhan, as autoridades tailandesas deram uma atenção especial aos turistas vindos da China. Sangue foi coletado e laboratórios processaram amostras que levaram ao vírus.

Um desses laboratórios é o Centro de Ciências da Saúde e de Doenças Infecciosas Emergentes da Cruz Vermelha, em Bangcoc. Sua diretora Supaporn Wacharapluesadee, estava de prontidão, aguardando a entrega das amostras. Ela faz parte de uma equipe da OMS que estuda possíveis novas pandemias. E faz um alerta: outras doenças transmitidas de animais para humanos estão por vir. A maior ameaça é o vírus Nipah, tão ou mais grave que o novo coronavírus.

Wacharapluesadee e sua equipe pesquisam muitas espécies. Mas seu foco principal tem sido os morcegos, que são conhecidos por abrigar muitos tipos de coronavírus. Sua equipe conseguiu entender a doença — que ainda não era chamada de covid-19 — em questão de dias, detectando o primeiro caso fora da China.

Eles descobriram que, além de ser um vírus novo que não se originou em humanos, o Sars-Cov-2 (que causa a covid) estava mais intimamente ligado a coronavírus que já haviam sido encontrados em morcegos. Graças às primeiras informações, o governo pôde agir rapidamente para colocar os pacientes em quarentena e aconselhar os cidadãos.

A próxima ameaça
Enquanto o mundo luta contra a covid-19, Wacharapluesadee já está preocupada com a próxima pandemia. A Ásia tem um grande número de doenças infecciosas emergentes. As regiões tropicais têm uma rica biodiversidade, o que significa que também abrigam um grande reservatório de potenciais patógenos, aumentando as chances de surgimento de um novo vírus. O aumento das populações humanas e o contato cada vez maior entre as pessoas e os animais selvagens nessas regiões também aumentam o risco.

Wacharapluesadee e seus colegas descobriram muitos vírus novos ao longo dos anos, a partir de coletas de amostras de milhares de morcegos. Eles encontraram principalmente tipos de coronavírus, mas também outras doenças mortais que podem sofrer mutações e começar a contaminar humanos.

Isso inclui o vírus Nipah, que infecta morcegos frugívoros e outros animais. “É uma grande preocupação porque não há tratamento e o vírus tem uma alta taxa de mortalidade”, diz Wacharapluesadee.

A taxa de mortalidade de Nipah varia de 40% a 75% dos infectados, dependendo de onde ocorre o surto.

Ela não está sozinha em sua preocupação. A cada ano, a Organização Mundial de Saúde (OMS) analisa uma grande lista de patógenos que podem causar uma emergência de saúde pública para decidir como priorizar seus fundos de pesquisa e desenvolvimento. Eles se concentram naqueles que apresentam maior risco à saúde humana, aqueles que têm potencial epidêmico e aqueles para os quais não há vacinas.

O vírus Nipah está entre os dez primeiros vírus mais perigosos e já causou alguns surtos na Ásia entre humanos. Ele normalmente é transmitido de animais para pessoas, mas pode ser pego por contato direto de pessoa com pessoa ou pelo consumo de alimentos contaminados. Durante o primeiro surto na Malásia, a maioria dos infectados foi contaminada por contato direto com porcos doentes.

Existem vários motivos pelos quais o vírus Nipah é tão preocupante. O longo período de incubação da doença (supostamente até 45 dias, em um caso) significa que há ampla oportunidade para um hospedeiro infectado propagá-la, mesmo sem saber que está doente. Pode infectar uma grande variedade de animais, tornando mais provável a sua propagação.

Alguém com o vírus Nipah pode apresentar sintomas respiratórios, incluindo tosse, dor de garganta, dores no corpo, fadiga e encefalite, um inchaço do cérebro que pode causar convulsões e morte. É uma doença que a OMS gostaria de impedir que se espalhasse.

Risco em toda parte
Battambang é uma cidade às margens do rio Sangkae, no noroeste do Camboja. Na feira, que começa às 5h da manhã, as motocicletas passam zunindo pelos compradores, levantando poeira em seu rastro. Barracas cheias de mercadorias e com lonas coloridas ficam ao lado de barracas improvisadas que vendem frutas deformadas.

Compradores andam de um lado para o outro, com suas sacolas plásticas cheias de compras. Senhoras idosas com chapéus de abas largas avaliam os vegetais à venda. Em outras palavras, é uma feira bastante normal. Até você olhar para cima.

Pendurados silenciosamente nas árvores acima da feira estão milhares de morcegos frugívoros, defecando e urinando em qualquer coisa que passe abaixo deles. Olhando mais de perto é possível ver que as lonas das bancas do mercado estão cobertas de fezes de morcego.

“Pessoas e animais caminham sob os poleiros, expostos à urina de morcego todos os dias”, diz Veasna Duong, chefe da unidade de virologia do laboratório de pesquisa científica Instituto Pasteur em Phnom Penh e colaborador de Wacharapluesadee.

O mercado de Battambang é um dos muitos locais onde Duong identificou morcegos frugívoros e outros animais entrando em contato com humanos diariamente no Camboja. Qualquer oportunidade para humanos e morcegos frugívoros se aproximarem é considerada uma “interface de alto risco” por sua equipe, o que significa que a transferência de um vírus de morcego para os humanos é altamente possível.

“Esse tipo de exposição pode permitir a mutação do vírus, o que pode causar uma pandemia”, diz Duong.

Os exemplos de proximidade são incontáveis. “Observamos [morcegos frugívoros] aqui e na Tailândia, em mercados, áreas de culto, escolas e locais turísticos como Angkor Wat — há um grande poleiro de morcegos lá”, diz ele. Em um ano normal, o templo Angkor Wat recebe 2,6 milhões de visitantes do mundo todo. Ou seja, são 2,6 milhões de oportunidades para o vírus Nipah pular de morcegos para humanos anualmente em apenas um local.

De 2013 a 2016, Duong e sua equipe lançaram um programa de rastreamento por GPS para entender mais sobre morcegos frugívoros e o vírus Nipah, e para comparar as atividades de morcegos cambojanos com morcegos de outros países.

Dois deles são Bangladesh e Índia. Ambos os países tiveram surtos do vírus Nipah no passado, provavelmente ligados ao consumo de suco de palmeiras de tâmaras. À noite, os morcegos infectados voavam para as plantações de tâmaras e lambiam o suco que escorria das árvores. Enquanto comiam, eles urinavam nos potes utilizados por vendedores para coletar o suco. Moradores compravam o suco de vendedores de rua no dia seguinte e se infectavam com a doença.

Bangladesh teve 11 surtos de Nipah de 2001 a 2011. No total, 196 pessoas foram infectadas e 150 morreram.

O suco de tamareira também é popular no Camboja. Duong e sua equipe descobriram que os morcegos frugívoros do Camboja voam muito longe — até 100 km por noite — para encontrar frutas. Isso significa que os humanos nessas regiões precisam se preocupar não apenas se vivem ou frequentam áreas cheias de morcegos, mas também com produtos que os morcegos possam ter contaminado.

Duong e sua equipe identificaram outras situações de alto risco. Quando acumuladas no chão e secas, as fezes de morcego (chamadas de guano) são um fertilizante popular no Camboja e na Tailândia.

Em áreas rurais com poucas oportunidades de trabalho, vender guano pode ser uma forma de ganhar a vida. Duong identificou muitos locais onde os moradores incentivavam morcegos frugívoros a se empoleirar perto de suas casas para que pudessem coletar e vender guano.

Mas muitos coletores de guano não têm ideia dos riscos que correm. “Sessenta por cento das pessoas que entrevistamos não sabiam que os morcegos transmitem doenças”, diz Duong.

De volta ao mercado Battambang, Sophorn Deun está vendendo ovos de pato. Questionada se já tinha ouvido falar do vírus Nipah, uma das muitas doenças de risco que os morcegos podem carregar, ela diz: “Nunca. Os moradores não se incomodam com os morcegos, nunca adoeci com eles”. Educar os moradores locais sobre os morcegos deveria ser uma prioridade, diz Duong.

Destruição do ambiente causa pandemias
Evitar proximidade com morcegos pode ter sido uma tarefa simples em um ponto da história da humanidade, mas, conforme nossa população se expande, os humanos estão cada vez mais destruindo habitats selvagens para atender à crescente demanda por recursos. E é isso que está aumentando a disseminação de doenças.

“A disseminação desses patógenos e o risco de transmissão aceleram com mudanças no uso da terra, como desmatamento, urbanização e ampliação do uso de terras para a agricultura”, explicam os pesquisadores Rebekah J White e Orly Razgour em um artigo de 2020 da Universidade de Exeter, no Reino Unido, sobre doenças zoonóticas (que são transmitidas de animais para pessoas) emergentes.

Sessenta por cento da população mundial vive nas regiões da Ásia e do Pacífico, onde uma rápida urbanização ainda está ocorrendo. De acordo com o Banco Mundial, quase 200 milhões de pessoas mudaram-se para áreas urbanas no Leste Asiático entre os anos de 2000 e 2010.

A destruição de habitats naturais de morcegos já causou infecções de Nipah no passado. Em 1998, um surto do vírus Nipah na Malásia matou mais de 100 pessoas. Pesquisadores concluíram que os incêndios florestais e a seca desalojaram os morcegos de seu habitat natural e os forçaram a ir para as árvores frutíferas cultivadas nas mesmas fazendas em que havia criação de porcos.

Já foi comprovado que os morcegos liberam mais vírus quando estão sob estresse. A combinação de serem forçados a se mudar e estarem em contato próximo com uma espécie com a qual eles normalmente não interagiriam permitiu que o vírus pulasse de morcegos para porcos e daí para os criadores.

A Ásia abriga quase 15% das florestas tropicais do mundo, mas a região também é líder em desmatamento, com uma perda de biodiversidade crescente. Muito disso se deve à destruição de florestas para dar espaço a plantações de produtos como o óleo de palma, mas também para criar áreas residenciais e pastos para o gado.

Os morcegos frugívoros tendem a viver em regiões de floresta densa, com muitas árvores frutíferas para se alimentar. Quando seu habitat é destruído ou danificado, eles encontram novas soluções — como o telhado de uma casa ou as torres de Angkor Wat, explica Duong. É provável que os morcegos que a equipe de Duong viu voarem até 100 km por noite em busca de frutas estejam fazendo isso porque seu habitat natural não existe mais.

A importância de preservar
Mas agora sabemos que os morcegos abrigam várias doenças perigosas ​​— de nipah a covid-19, de ebola a sars — devemos apenas erradicá-los? Não, explicam os cientistas: isso só tornaria as coisas piores.

Tracey Goldstein, diretora de instituto One Health e parte do projeto Predict (que pesquisa como prevenir novas doenças), explica que os morcegos desempenham papéis ecológicos extremamente importantes. Eles polinizam mais de 500 espécies de plantas e ajudam a manter os insetos sob controle — desempenhando um papel extremamente importante no controle de doenças como a malária, transmitidas por insetos.

“Eles desempenham um papel extremamente importante na preservação da saúde humana”, explica Goldstein. Ela também aponta que o abate de morcegos só ajuda a transmitir mais doenças.

“O que uma população de animais faz quando você diminui o seu número é começar a se reproduzir com mais velocidade e quantidade, ou seja, ter mais filhotes — isso tornaria [um ser humano] mais suscetível”, diz ela.

Esforço global
Para cada resposta que Duong e sua equipe encontram, surgem novas perguntas. Uma delas é: por que o Camboja ainda não teve um surto do vírus nipah, considerando todos os fatores de risco? É uma questão de tempo ou os morcegos frugívoros cambojanos são ligeiramente diferentes dos morcegos frugívoros da Malásia, por exemplo? O vírus no Camboja é diferente do vírus na Malásia? A forma como os humanos interagem com os morcegos é diferente em cada país?

A equipe de Duong está trabalhando para descobrir as respostas, mas o processo é lento. E o grupo não está sozinho nessa busca. A caça ao próximo vírus é um enorme esforço colaborativo global, com cientistas, veterinários, conservacionistas se unindo para entender quais doenças enfrentaremos e como evitar um surto.

Quando Duong tira uma amostra de um morcego e encontra o vírus nipah, ele envia o material para David Williams, chefe do grupo de diagnóstico de doenças de emergência do Centro Australiano de Preparação para Doenças.

Como o vírus Nipah é tão perigoso — é considerado por governos em todo o mundo como tendo potencial para uso em bioterrorismo — apenas um punhado de laboratórios em todo o mundo têm permissão para cultivá-lo e armazená-lo.

O laboratório de Williams é um deles. Sua equipe é formada por alguns dos maiores especialistas mundiais no patógeno, com acesso a uma grande variedade de ferramentas de diagnóstico não disponíveis na maioria dos laboratórios. Usando roupas de contenção herméticas, eles são capazes de cultivar vírus altamente perigosos a partir de uma pequena amostra e então fazer testes para entender como ele é replicado, transmitido e como causa doenças.

Todo esse processo depende de uma enorme operação. Primeiro, Duong coleta urina de morcegos espalhando uma folha de plástico sob um poleiro de morcegos no Camboja. Isso evita ter que capturar os morcegos, o que poderia ser traumatizante para os bichos. Ele leva suas amostras de volta ao laboratório, decanta-as em tubos, rotula-as e embala-as com segurança em caixas térmicas.

Elas são coletadas por uma empresa que faz envios especiais de mercadorias perigosas e levadas de avião para a Austrália, onde as amostras de vírus passam pela alfândega para que as licenças e autorizações sejam aprovadas.

No laboratório de Williams, passam por cultivo e testes. Os resultados obtidos são compartilhados com Duong no Camboja.

Williams diz que colocar mais laboratórios [de biossegurança] em lugares como o Camboja poderia acelerar a identificação e as pesquisas com vírus. “No entanto, eles são caros de construir e manter. Geralmente esse é o elemento limitante”, afirma.

O financiamento para o trabalho que Duong e Wacharapluesadee estão realizando nem sempre é constante. O programa Predict recebia recursos do governo dos Estados Unidos, mas o investimento foi cortado pelo governo do ex-presidente Donald Trump. O presidente Joe Biden, que tomou posse agora em 2021, prometeu restaurá-lo.

Duong e sua equipe agora estão buscando financiamento para uma viagem para detecção de patógenos, para apoiar a vigilância contínua de morcegos no Camboja e para entender se houve infecções em humanos até agora não relatadas.

Eles ainda não conseguiram garantir o dinheiro para continuar seu trabalho com o vírus Nipah. “A vigilância de longo prazo nos ajuda a informar as autoridades [para decretar] medidas preventivas e evitar surtos não detectados que causariam um surto maior”, diz Duong.

E sem treinamento contínuo, os cientistas podem não ser capazes de identificar e caracterizar novos vírus rapidamente, como Wacharapluesadee fez com a covid-19 na Tailândia. Esse tipo de informação é essencial para começar a trabalhar em uma vacina.

Enquanto isso, Wacharapluesadee tem financiamento para uma nova iniciativa chamada Projeto Thai Virome, uma colaboração entre sua equipe e o Departamento de Parques Nacionais, Vida Selvagem e Conservação de Plantas do governo na Tailândia. Isso permitirá que ela tire amostras de mais morcegos e de uma variedade maior de animais selvagens para entender as doenças que eles abrigam e as ameaças à saúde humana.

“O projeto Predict foi um exercício sobre como diagnosticar novos vírus em animais selvagens. Então, quando eu e minha equipe descobrimos o genoma do [patógeno do coronavírus], não foi muito [surpreendente], por causa do projeto de pesquisa, que nos deu muita experiência. Fortaleceu a nossa capacidade “, afirmou.

Duong e Wacharapluesadee esperam continuar colaborando na luta contra o vírus Nipah no Sudeste Asiático, e os dois elaboraram uma proposta para a vigilância conjunta na região. Assim que a crise de covid-19 passar, eles planejam submeter o projeto à Agência de Defesa para Redução de Ameaças, uma organização governamental dos EUA que financia trabalhos destinados a reduzir as ameaças representadas por doenças infecciosas,

Em setembro de 2020, a BBC questionou Wacharapluesadee se ela acha que pode impedir a próxima pandemia. Ela estava sentada em seu escritório com seu jaleco branco, tendo examinado centenas de milhares de amostras para diagnóstico de covid-19 nos últimos meses — muito além da capacidade normal de seu laboratório em qualquer ano normal.

Apesar de tudo, um sorriso apareceu em seu rosto. “Eu vou tentar!”, disse ela.

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