Zé Ramalho escreveu Admirável Gado Novo como quem desabafa por um país inteiro. Na canção, o “povo marcado, povo feliz” não é uma ironia qualquer; é o retrato de uma nação que aprendeu a suportar o sofrimento com um sorriso de resignação. Décadas depois, a metáfora continua viva. Mudaram os figurinos, os donos do pasto e as cercas de arame. O gado, porém, continua o mesmo: ordeiro, manso, disciplinado, seguindo o som do berrante da esperança que nunca se cumpre.
Quando escrevi anos atrás um artigo com o mesmo tema, quis retratar o que via nos corredores superlotados da saúde pública: a fila do sofrimento, o olhar cansado, a impotência coletiva diante da omissão do poder. Hoje, a metáfora se amplia. O país inteiro vive em currais cada vez mais sofisticados, currais da violência, da pobreza, da desinformação e da manipulação. O Rio de Janeiro é talvez o espelho mais nítido dessa tragédia nacional, um território onde a lei se dobra à força do crime e onde o cidadão comum aprende a conviver com o medo como quem convive com a chuva.
A criminalidade se transformou num Estado paralelo. Há bairros onde o poder público só entra escoltado, onde o silêncio é mais seguro que a palavra e onde a liberdade custa mais caro que a vida. É o mesmo gado, agora tangido por facções, por milícias, por dívidas e por promessas de salvação. O curral é o mesmo, apenas trocou de porteira.
E enquanto o caos se espalha, o povo segue marcado, mas teimosamente feliz. É a felicidade possível de quem aprende a rir da própria dor. É o contentamento de quem sobrevive a cada dia sem saber se haverá outro. O povo marcado por balas perdidas, por filas, por promessas que não se cumprem. E ainda assim, o povo feliz, porque a esperança, mesmo mutilada, é o último instinto do gado antes do abate.
Zé Ramalho viu longe. O gado novo de que fala não é feito de carne e osso apenas, mas de conformismo e cansaço. O povo brasileiro virou especialista em adaptar-se. Já não protesta, compartilha memes. Já não exige, agradece o mínimo. Já não sonha, se contenta com o possível. E entre uma tragédia e outra, volta a cantar, como se cantar bastasse para esquecer.
Vivemos, enfim, num país de currais invisíveis. Currais de medo, de descrença, de obediência. Cada um de nós tem seu brete particular, de onde enxerga o mundo com as mesmas grades que o aprisionam. E seguimos assim, admiravelmente gado novo, tentando parecer felizes enquanto o pasto some e o mugido ecoa.
