Ninguém esquece o dia em que pega a estrada levando a casa inteira dentro do peito. No Nordeste, chamam isso de retirada — esse movimento antigo de quem foge da seca, do aperto, da falta de escolha, mas leva junto uma coragem que só quem nasce por lá conhece.
Lembro de Seu Agenor contando que, quando menino, saiu de pau de arara, equilibrando sonhos e uma mala de papelão presa com barbante. “A gente ia deixando um rastro de poeira”, dizia, “como se o sertão quisesse marcar que a gente ainda era dele”. A cada parada, alguém descia, alguém subia, e o mundo parecia balançar no ritmo do caminhão.
A verdade é que ninguém abandona o chão onde nasceram seus mortos e floresceram seus afetos. Mas, no miolo quente do sertão, às vezes a vida vira um silêncio tão fundo que até as galinhas sabem que é hora de partir. Assim começaram muitas retiradas: uma promessa de trabalho longe, um parente chamando, uma chuva que não caiu.
E lá iam eles — famílias inteiras — levando panelas amassadas, retratos de santos, cadernos de criança, lembranças da última colheita, e um punhado de esperança embrulhado em pano cru. No caminho, o vento batia no rosto como quem queria empurrar pra frente, e o coração ficava pendurado entre dois mundos: o que ficava para trás e o que ainda não se sabia.
O tempo passou. Hoje, muitos fazem o caminho inverso. Voltam. Retornam para as cidades que cresceram, para os sertões que reinventaram a própria vida, para as casas que ficaram de pé esperando. E mesmo quem nunca voltou carrega na memória o cheiro do mato queimado, a luz quente da tarde, e aquela saudade que não seca nunca.
Porque a retirada não é só fuga — é resistência. É o movimento teimoso de continuar vivo. Cada migrante nordestino carrega uma história que cabe num olhar: o olhar de quem sabe que a terra pode expulsar, mas nunca deixa de chamar.
E, no fim das contas, quem parte nunca parte inteiro. Fica sempre uma metade no lugar de origem, plantada como mandacaru. A outra metade segue rodando o mundo, buscando o que é preciso.
E assim se constroem as memórias da retirada: entre estradas de terra, promessas de futuro e raízes que insistem em não morrer.
