Rosana nasceu em Caicó, filha de um bancário que vivia de agência em agência, como se cada cidade fosse apenas uma estação de trem. E ela, com um matolão preso às costas, aprendeu cedo que a vida não se deixa enraizar facilmente. Era preciso partir, conhecer, deixar, carregar as lembranças numa mala que sempre parecia pequena para tanta coisa.
Sua infância foi feita de mudanças e flores que desabrochavam no quintal de cada nova casa, flores que se despediam das janelas quando chegava a hora de ir embora. Viu jardins em quase todo o Nordeste, depois em Goiânia, até que, por fim, fincou pouso em Brasília, onde seu pai se aposentou e onde ela, casada, se fez mãe.
Porém, antes disso tudo, antes dos caminhos da maternidade e da vida adulta, houve um tempo de descobertas em Propriá. Era lá que, nas tardes preguiçosas, a pequena Rô via o São Francisco correr largo e sereno. Mas era em Gaibu, nos fins de semana, que ela sentia-se inteira. O mar de Pernambuco era para a então garota um gigante brincalhão. Ela corria até ele, era derrubada pelas ondas e logo se erguia de volta, sorridente;
Rô está de novo em Pernambuco, onde veio para um prolongado passeio. Nesta terça, 2, ela confidenciou-me, ao lado do marido Roberto, as aventuras de infância. Lembrou de como o vento enchia seus cabelos, e de como acreditava que as gaivotas lhe serviam de escolta, como cavaleiros alados guardando os segredos de uma menina que via no horizonte um mistério sem fim. Cada mergulho era uma saga; cada concha que recolhia parecia conter uma história escondida.
Cresceu – conta. E vieram os estudos, o amor, os filhos. Tornou-se mulher em Brasília, onde aprendeu a erguer a própria casa, a se refazer nas tempestades e a silenciar nos dias de calmaria. A menina de Caicó e depois Propriá adormeceu na mulher em que se tornou, mas, garante, nunca morreu. Guardava-se quieta, como aquelas sementes que esperam anos até a chuva certa para germinar.
Foi então que resolveu voltar a passeio. Meio século a separava da última vez em que sentiu o gosto salgado das águas de Gaibu. O caminho até lá parecia um ritual, onde cada curva da estrada trazia de volta um cheiro, uma lembrança, um retrato antigo de sua mãe sorrindo ao sol, de seu pai estendendo a toalha na areia.
E então, diante dela, lá estava ele, o mar. “Não sei se era o mesmo. Talvez fosse mais calmo, ou talvez fosse eu quem tivesse mudado”, murmurou, enquanto caminhava até a beira, hesitante, como quem reencontra um velho conhecido. E quando a primeira onda molhou seus pés, ela entendeu que ele também a reconhecera.
Rosana não resistiu. Mergulhou na água morna, esverdeada. O sal ardeu na boca, nos olhos, mas também no coração. Era a mesma menina, a mesma Rô, voltando ao colo do gigante brincalhão. Só que agora, dentro dela, não estava apenas a criança, mas sim a mulher, a mãe, a peregrina que, sempre segura pelas mãos do pai, atravessara tantos desertos e cidades.
Rosana parecia ser todas numa só: a menina que corria na areia, a filha de bancário mais viajante que caixeiro ambulante, a mãe de Brasília, a mulher madura que ousava desafiar o tempo.
Homero escreveu sobre Ulisses e sua volta a Ítaca. Já Rô, sem Troia nem heróis, viveu sua própria Odisseia. Porque regressar a Gaibu, meio século depois, foi como retornar a si mesma. Agora era preciso seguir em frente, deixar as ondas para trás, embora reconhecendo que certas viagens não terminam nunca.
– Tio, elas apenas esperam o momento certo para que possamos recomeçá-las, observou, antes de ser interrompida por Roberto: “Chega de nostalgia. Vamos voltar para o carro porque precisamos servir de Uber para o outro tio que está no mercado”.
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José Seabra é diretor da Sucursal Regional Nordeste de Notibras
