No sertão do Nordeste, o som de um caminhão-pipa chegando a uma comunidade ainda é motivo de alívio e festa. Para muitas famílias, essa é a única forma de garantir água para beber, cozinhar e cuidar da higiene. Em pleno século 21, a cena continua sendo realidade para milhões de brasileiros.
Segundo o Sistema Nacional de Informações sobre Saneamento (SNIS), cerca de 30% da população nordestina não tem acesso regular à água tratada. Em áreas rurais, o índice é ainda mais alarmante: quase seis em cada dez pessoas dependem de soluções emergenciais, como caminhões-pipa ou captação improvisada em barreiros e açudes.
A seca sempre marcou a história do Nordeste, mas especialistas ressaltam que o problema da água vai além da falta de chuvas. “A escassez existe, mas a desigualdade na distribuição e no tratamento da água é o que mais pesa”, explica a pesquisadora Juliana Melo, da Universidade Federal do Ceará (UFC).
Ao longo do século XX, governos adotaram políticas emergenciais, como o Programa de Combate aos Efeitos da Seca, mas que muitas vezes se transformaram em instrumentos políticos, com o chamado “indústria da seca”. A dependência de caminhões-pipa, por exemplo, é criticada por criar ciclos de clientelismo em vez de soluções definitivas.
Nos últimos anos, grandes projetos foram implementados. O mais emblemático é a transposição do rio São Francisco, que leva água a estados como Ceará, Rio Grande do Norte, Paraíba e Pernambuco. Inaugurado em etapas desde 2017, o projeto beneficia diretamente mais de 12 milhões de pessoas, mas enfrenta críticas quanto à demora na entrega de obras complementares, como adutoras e estações de tratamento.
Outra iniciativa de destaque é o Programa Um Milhão de Cisternas, desenvolvido em parceria com organizações da sociedade civil. Desde os anos 2000, já foram instaladas mais de 1,2 milhão de cisternas de captação da água da chuva, garantindo abastecimento doméstico a famílias rurais.
A falta de água potável não é apenas um problema de infraestrutura, mas também de saúde pública. Dados do Ministério da Saúde mostram que doenças de veiculação hídrica, como diarreia e hepatite A, continuam entre as principais causas de internação em comunidades rurais. Crianças são as mais afetadas, com impactos diretos no aprendizado e na qualidade de vida.
“A cada ano, milhares de crianças perdem dias de aula por causa de doenças que poderiam ser evitadas com água limpa. Isso perpetua o ciclo da pobreza”, alerta a médica sanitarista Márcia Andrade, da Universidade Federal da Paraíba (UFPB).
Apesar dos desafios, há sinais de esperança. A expansão de tecnologias de dessalinização da água do mar e de poços subterrâneos, associada ao avanço da energia solar, abre novas perspectivas. Projetos-piloto em comunidades do Ceará já utilizam painéis solares para abastecer sistemas de dessalinização de baixo custo.
Além disso, especialistas defendem maior investimento em educação hídrica — capacitando comunidades para o uso racional e a gestão coletiva da água. “A convivência com o semiárido é possível. O problema não é a seca em si, mas como lidamos com ela”, ressalta Melo.
Em 2010, a Organização das Nações Unidas (ONU) reconheceu o acesso à água potável como direito humano fundamental. No entanto, para milhões de nordestinos, esse direito ainda é uma promessa distante.
“Água não pode ser vista como favor político, mas como direito básico. Enquanto não houver abastecimento regular e seguro, não podemos falar em cidadania plena no Nordeste”, conclui Andrade.
Se a água é vida, garantir sua presença no sertão é garantir que o Nordeste continue a resistir, florescer e prosperar — não apenas sobreviver.
