A aventura, um tanto utópica, começou a ser desenhada na semana anterior, quando Gibran recebeu uma mensagem de WhatsApp no notebook que costuma usar para escrever – como ele supõe -, textos icônicos, como se um Homero fosse. A remetente, uma amiga de velha data. A proposta, uma viagem-surpresa cortando praticamente o Brasil de ponta a ponta.
Agora o cenário já era outro. O sedã negro cortava a neblina da manhã como um velho lobo do asfalto. Com os cabelos prateados e os olhos fixos no horizonte, ele deixava para trás o litoral de Pernambuco. A praia ainda exalava maresia quando um sonho sempre sonhado enfim se apresentava à sua frente nas mais diferentes matizes. Florianópolis o chamava com seu misto de brisa fria e promessas guardadas.
Dirigia como quem pensa. Cada quilômetro uma lembrança, cada curva um suspiro. Na Bahia, sem aviso ao GPS ou ao coração, desviou o curso. Deixou o azul do Atlântico e mergulhou nas terras de Minas, onde o tempo anda mais devagar e as histórias se conservam em barris de carvalho. Em Salinas, comprou uma caixa de aguardente, daquelas que ardem na boca e esquentam a alma.
Logo depois, em uma cidade vizinha, embarcou Bi@. Ela, com os cabelos reluzentes de uma Lua Nova, sorriu ao vê-lo. Os anos não apagaram nada entre eles. Nem os risos, nem os silêncios.
– Você ainda dirige como se fosse fugir do tempo — disse ela, entrando no carro sem cerimônia.
Reencontraram-se como quem apenas retomasse uma conversa deixada em suspenso. Tinham se conhecido em Brasília, quando a vida era feita de compromissos e utopias. O reencontro, no entanto, nascera em um chat de bate-papo, onde as palavras vinham leves, fluidas. Primeiro, no aberto. Depois, no reservado, entre confissões e desejos, entre lençóis que só existiam na imaginação até então.
O motor do carro roncava rumo ao Espírito Santo. A estrada, ladeada por florestas espessas, parecia guardar segredos de outras eras. À noite, paravam apenas para descansar e brindar com um gole da cachaça recém-comprada.
Dois dias depois, já em solo catarinense, o carro estacionava discreto diante do Restaurante 261. Gibran e Bi@ desceram devagar, como quem pisa em solo sagrado. Gutta, a amiga virtual, não esperava aquela aparição súbita. Trabalhava ali, entre panelas e sorrisos, servindo delícias preparadas por Fernando Gomes, chef de alma inventiva, e Gabrielle, a esposa e sócia, economista de números e temperos equilibrados.
– Trouxemos isso pra você, Gutta — disse Bi@, entregando a caixa de cachaça como um presente ancestral. — É pra aquecer no frio desta terra.
Gutta riu, abraçando os dois com emoção genuína.
– Aqui também servimos vinhos que aquecem o corpo e a alma, disse, brindando o momento com um doce sorriso.
O riso foi geral. Sentaram-se à mesa com a cumplicidade dos que já viveram muito — e não têm mais pressa. Gibran, de olhos no cardápio, pediu um Bacalhau às Natas. Bi@ escolheu um Camarão ao Dijon, como quem degusta memórias. O vinho branco chegou à mesa como brinde ao encontro presencial de amigos que só se conheciam no mundo virtual.
Naquela noite, o frio de Florianópolis se curvou ao calor das lembranças. E Gibran, ao erguer a taça, não brindou apenas ao presente, mas àqueles caminhos que o levaram até ali — cheios de curvas, aromas, palavras digitadas e silêncios partilhados.
Na manhã seguinte, o sol pálido de Florianópolis mal se insinuava entre as nuvens quando Gibran e Bi@ acordaram tarde, embalados pelo cansaço da viagem e pelo vinho da noite anterior. A pousada onde se hospedaram era simples, mas cheirava a lenha e café passado na hora. A vista do quarto abria-se para um fiapo de mar, azul e tímido como quem espreita a vida alheia.
Enquanto Bi@ penteava os cabelos diante do espelho — “o tempo me respeita, Gibran” — ele conectou o notebook ao Wi-Fi da pousada e entrou na velha sala de bate-papo: EntreLinhas_Amor&Memória. Era um refúgio antigo, mas ainda pulsava.
O login automático trouxe o velho nick de volta: CaféComBrumas. Logo surgiram nicks conhecidos na lateral da tela:
LuaMadura, PoemaSolto, VinhedoSecreto, FlorDeEstio, PianistaCega, AzulTelúrico… E no canto superior, lá estava ela: Bi@, já online, digitando.
A janela do reservado pipocou antes mesmo de Gibran dar um bom dia.
FlorDeEstio:
– Gibran? Isso é verdade mesmo ou é só roleplay poético? Você e Bi@ juntos em Floripa?
VinhedoSecreto:
– Estão dizendo que você apareceu no 261 com uma caixa de Salinas! Que decadência refinada! 😂
LuaMadura:
– Eu vi no status da Gutta! Vocês foram mesmo até lá? Isso é filme, não é vida!
Gibran sorriu. Respondeu com calma, como sempre fazia:
– Não é filme. É estrada. É reencontro. É saudade com GPS. A vida se abriu pra nós feito curva de serra em tarde de neblina.
Bi@:
– E teve vinho branco, camarão, bacalhau. Mas o melhor foi o riso de Gutta quando entreguei a caixa de cachaça. Aquilo foi abraço engarrafado.
PianistaCega:
– Vocês sempre foram assim… melodramáticos e doces. Lembro de vocês nos debates sobre o tempo e a ausência. Agora estão aí, virando ausência em presença. 💜
AzulTelúrico:
– Isso me dá esperança. Estou com meu sedã na garagem e um mapa aberto. Talvez precise de uma Bi@ no banco do carona também…
Gutta entrou na sala:
– Sim, é tudo verdade. Eles chegaram como um poema na contracapa da vida. E deixaram saudades antes mesmo de irem embora. Ainda ouço o tilintar das taças…
PoemaSolto:
– E pensar que tudo começou numa discussão sobre Neruda e a eternidade. Vocês fizeram poesia virar rota. Agora quero crônica com vocês de protagonistas!
A sala vibrou. Como nos velhos tempos, emojis piscavam, frases voavam rápidas, e até a velha playlist compartilhada — com Gal Costa, Belchior e Caetano — ressuscitou no canto da tela.
Gibran fechou o notebook por um momento e olhou para Bi@, que agora terminava de prender os cabelos num coque despretensioso.
— A sala está viva, Bi@. Eles acreditam.
Ela riu, estalando os dedos como quem sela um feitiço.
— É porque a gente acreditou primeiro, Gibran. Agora bora pegar a estrada de novo. Ainda há curvas que não lembramos, mas que já nos esperam.
Três dias depois, o sedã de Gibran cruzava a ponte Hercílio Luz como quem atravessa não só o mar, mas o tempo. Florianópolis ficava para trás, com seu vento frio e suas promessas cumpridas. No porta-malas, três garrafas de Salinas a menos. No coração, uma leveza inquieta.
— Próxima parada: Santana do Livramento — disse Bi@, lendo o GPS com a voz adormecida.
— Fronteira. Terra de vinhos e silêncios longos — murmurou Gibran, ajustando os óculos escuros.
— E de DonCortejo, lembra dele? Vive dizendo no chat que tem uma vinícola, mas ninguém nunca sabe se é verdade ou fantasia…
— Só tem um jeito de saber.
O carro mergulhou rumo ao interior gaúcho, entre campos ondulados, araucárias solitárias e vilarejos onde o tempo parece pedir licença para passar. Na playlist, Mercedes Sosa embalava as conversas que iam e vinham como os fios de cabelo de Bi@, soltos ao vento da janela entreaberta.
No meio da tarde, o celular vibrou com uma mensagem privada no bate-papo.
DonCortejo:
– Me avisem quando passarem por Rosário do Sul. A vinícola é real. Mas a lenda sou eu.
– Ele está nos esperando — disse Gibran, entre um riso e uma freada suave na descida.
Chegaram ao entardecer. A vinícola era modesta, mas poética. Parreirais a perder de vista, barris empilhados como livros de madeira, e um aroma de uvas esmagadas no ar.
DonCortejo era um homem esguio, de barba branca bem aparada e olhos de quem já leu muitos invernos. Recebeu os dois com um abraço demorado e um cálice de tinto seco.
– Gibran, Bi@… quando entrei naquela sala há 10 anos, nunca imaginei que um dia abriria as portas da minha vida para vocês. E olha que nem precisou de senha.
– O amor não precisa de login, Cortejo — respondeu Bi@, com um sorriso.
Sentaram-se à mesa de madeira rústica, onde três taças foram preenchidas com um merlot envelhecido, safra 2015 — o mesmo ano em que a sala de bate-papo fora criada.
– Vocês são os primeiros a me visitar. A maioria vive de saudade virtual. Vocês, não. Vocês são estrada, poeira e vinho.
Ficaram ali até a noite se instalar. O céu sulino se curvou sobre eles como um manto de veludo escuro, pontilhado de estrelas. Gibran puxou do bolso um papel antigo, dobrado em quatro. Era a impressão de uma conversa que tivera com Bi@, anos atrás, num dos invernos de solidão digital:
CaféComBrumas: Se um dia te encontrar, Bi@, que seja numa estrada fria, com vinho bom, palavras quentes e silêncio confortável.
Bi@: E que tenha alguém que nos chame pelo nick, e não pelo nome de batismo.
– Aqui estamos, Bi@. No frio, com vinho e com Cortejo.
Ela respondeu apenas com um beijo breve no canto da boca dele. Silêncio confortável.
Mais tarde, voltaram à sala de bate-papo para contar. Como sempre, a comoção foi imediata:
PianistaCega:
– Vocês estão virando crônica semanal. Já posso reservar os direitos autorais?
LuaMadura:
– Gibran, se fizerem um filme, quero ser a roteirista.
FlorDeEstio:
– Bi@, você é um escândalo de vida vivida.
DonCortejo:
Essa noite, o vinho dorme mais feliz. E eu também.
Gibran e Bi@ trocaram olhares. Sabiam que logo voltariam para o mundo virtual, mas com a certeza de que o lado real existe.
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José Seabra é diretor da Sucursal Regional Nordeste de Notibras
