Desde menino ouço dizer que toda tragédia na vida é uma comédia se vista de longe. Isso significa que temos de viver como se estivéssemos nos vendo de longe? Não necessariamente. Para o romancista inglês Horace Walpole, a existência é uma comédia para os que pensam e um flagelo para os que sentem. Mais pragmático, o dramaturgo irlandês Oscar Wilde avaliava as desditas como uma profunda banalidade para os outros. Sou da teoria do teólogo e médico alemão Albert Schweitzer, para quem a maior desgraça da vida do homem é o que morre entre as virilhas enquanto ele vive. Velho muito cedo e sábio tarde demais, descobri que a tragédia da atual geração é o corpo bonito, a alma feia e a mente vazia. É disso que a direita tem se aproveitado.
Atualmente, a grande calamidade social é o nosso próprio descaso. Com a consciência parcialmente infantil, temos o estranho hábito de ser solidários somente após as catástrofes. Resolvida a desgraceira, acabou a solidariedade. Simples assim. Pior é nossa teimosia em dar poder aos incompetentes, idolatrar estultos, ouvir idiotas e banalizar a covardia dos golpistas, aqueles que fogem como ratos quando são descobertos. Esta é a fragilidade humana. E ela só é percebida quando a tragédia se avizinha. Um passado bastante recente de desfortúnio e de pandemia mostrou a boa parte do povo brasileiro que a outra parte (felizmente a minoria) ainda não aprendeu a olhar os outros como seus iguais.
Azar o deles, pois também aprendemos a vê-los como frutos do egoísmo e da mais patética das tragédias: a intolerância. Romântico por natureza, faço do vinho minha bebida preferida dos momentos mais trágicos e menos prazerosos. No entanto, normalmente me embebedo é na comédia. Sempre foi assim, inclusive nas pequenas causas, isto é, as tragédias de antigamente. A bem da verdade, foram elas (as coisas pequenas) que me ensinaram a ser grande. Por exemplo, imaginem acabar as fichas no meio de uma ligação afetiva feita do orelhão. Um desastre. Mais trágico era datilografar errado a última palavra da página. Naquele tempo, as máquinas de escrever não tinham fita corretiva.
Ficava “pussesso” da vida ao perceber que a agulha da radiola havia riscado o novo LP do Roberto Carlos justamente na melhor música. Os xingamentos não cessavam quando a fita do Atari parava de funcionar, mesmo depois daquela assoprada básica e venturosa. Apanhava de vara naquele momento em que o locutor da rádio preferida falava as horas ou soltava uma vinheta bem no meio da música que eu tinha passado horas esperando para gravar na fita K7. Miserável, fedapê. Sem entender patavinas de inglês, francês, americanês ou espanhol (era tudo igual), endoidava de comer madeira caso o desventurado disc jockey (animador radiofônico da época) não falasse o nome da música no fim da apresentação. Sem recursos, já fiquei anos sem saber quem cantava ou como chamava aquela música que tanto amava.
A tragédia se consumava quando o toca-fitas mastigava a fita K7 com a gravação da tal música. Eita miséra! Às vezes, ameaçava tirar as letras das músicas em inglês. Era uma cagada. Tudo errado. Ficava até feliz ao comprar o folheto da Fisk e descobrir que estava tudo errado mesmo. Tarde demais, pois já tinha decorado errado (e canto errado até hoje). Pior das pragas, a televisão sempre foi minha inimiga. Ela resolvia sair do ar no último capítulo da novela ou na reapresentação do enlatado do The Monkees. Imaginem quem meus pais obrigavam a subir no telhado para mexer na antena. Eu não aguentava mais aquela pergunta cretina: “Melhorou?” Minha mãe gritava da janela: “Melhorou o 5, o 7 e o 9, mas piorou o 4, o 11 e o 13″. Na vida familiar, a comicidade da tragédia até que era gostosa.
Começava com o programa Jovem Guarda, ocasião festiva e propícia para molhar o biscoito com patê. Antes disso, corria na padaria para buscar o refrigerante, mas, após um quilômetro e meio de caminhada, percebia que havia esquecido o casco. E não havia negociação com o português do estabelecimento. Ir para a escola era uma festa, mesmo quando o Ki-suco vazava da garrafinha da lancheira e molhava todo o PO, o famoso pão com ovo. Tristeza das mais tristes foi descobrir que todas as 36 fotos do aniversário de 15 anos tinham ficado desfocadas. Tinha vontade de pular do vaso sanitário ao ser avisado que, da caixa de lápis de cor, só havia sobrado o branco. Alegria era ganhar o segundo picolé grátis com palito premiado. Ainda hoje olho o palito na esperança de novas promoções. Curioso é que nem faz tanto tempo assim. São 40, 50, 60 anos, mas nossos filhos não têm ideia do que significa tudo isso. Boa parte também fez questão de esquecer que nossa democracia foi salva justamente pela incompetência daqueles que os desavisados lutam para manter no poder. Xô, manés!
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Armando Cardoso é presidente do Conselho Editorial de Notibras
