Francisco, sujeito de hábitos, trabalhava numa loja de ferragens em Brasília. E, entre um atendimento e outro, gostava de se deliciar com os textos de certo autor carioca, que publicava diariamente no Notibras. De tão fã, não raro, remoía cada trama como se procurasse na psicologia a explicação para seu desfecho, muitas vezes carregado de ironia.
Os fregueses mais assíduos, acostumados com tamanha paixão por literatura, não raro, até esperavam por comentários sobre o enredo do dia. Alguns, inclusive, curiosos que ficavam, pediam para que Francisco compartilhasse o texto com eles.
— Que trama, Francisco!
— É verdade, Lúcia! E você sabe de uma coisa?
— Do quê?
— Pois sonho com o dia em que ele entrará aqui na loja.
— O escritor?
— Sim! Já imaginou?
— Ah, seria muito legal! Queria estar aqui pra ver isso acontecer.
De tão boa estava a conversa, a cliente quase se esqueceu por que havia ido ao estabelecimento.
— Ah, Francisco, que cabeça a minha! Preciso de uma torneira pro tanque.
Dizem que quando queremos muito uma coisa, às vezes, ela acaba acontecen-do. Se bem que, na maioria dos casos, nem mesmo o cheirinho chega às nossas ansio-sas narinas. Todavia, parece que o Francisco estava com sorte naquela manhã de se-gunda-feira de rigoroso inverno na capital federal.
— Bom dia, o senhor tem esse tipo de resistência de chuveiro?
— Não acredito!
— Na resistência?
— Não é possível!
— O quê? O chuveiro?
— Meu Deus!
— O senhor está bem?
— Não pode ser!
— O quê?
— É você mesmo?
— Se eu sou eu?
— Te leio todos os dias.
— Ah, tá!
O escritor, finalmente, entendeu aquela esdrúxula situação. Aliás, esdrúxula, sim, pois não era algo que acontecesse com frequência. Seja como for, sentiu-se o próprio rei da cocada preta. Tanto é que estufou o peito e sorriu seu melhor sorriso, daqueles que dá para ver até os sisos.
— Jurava que seus olhos fossem verdes.
— Minha mãe também. Até hoje, o senhor acredita?
— Francisco! Me chame de Francisco, por favor.
— Francisco.
Conversaram por quase uma hora, até que o escritor recebeu uma mensagem da esposa: “Cadê, você? Por acaso foi fabricar a resistência? Não quero tomar outro ba-nho frio!”
O fã pegou a resistência do chuveiro, o escritor pagou no débito e, quando já estava de saída, foi interrogado pelo vendedor.
— Ah, você escreve contos ou crônicas? É que não sei a diferença.
— Meu amigo, só sei escrever contos.
— Jura?
— Sim. É que sou um mentiroso compulsivo.
……………………
Eduardo Martínez é autor do livro ’57 Contos e Crônicas por um Autor Muito Velho’.
Compre aqui
https://www.joanineditora.com.br/57-contos-e-cronicas-por-um-autor-muito-velho
