Notibras

Lembranças do golpe de 1º de abril permanecem vivas

Desde 1961, com a derrota imposta pelo povo nas ruas ao golpe militar que intentara impedir a posse de Jango, vivíamos um processo histórico tenso. Hoje, com o distanciamento de tantos anos, diríamos que tenso, mas muito rico, atravessado que foi por uma realidade em construção, povoada por dúvidas e receios, muitos sonhos e muitas esperanças.

Com os termos de hoje, diria que vivíamos de forma aguda o teatro de uma grande polarização, a que nos persegue há 500 anos, entre a necessidade do avanço (então o pleito das reformas de base, ainda hoje por serem realizadas) e a resistência do status quo, nome de fantasia do atraso e da concentração de renda, de escandalosa injustiça.

Acreditávamos, a esquerda de então, na revolução brasileira, vista como em processo, e nos considerávamos construtores de uma nova sociedade. A direita, por seu turno, a um tempo negava a ruptura e a conciliação, e direita e esquerda disputavam aliança com os militares, de um lado os “entreguistas”, de outro, o nosso campo, os legalistas, herdeiros do Marechal Lott.

Em certos momentos tínhamos a sensação de tocar com as mãos o horizonte socialista, nossa utopia de sempre, e ao mesmo tempo confiávamos no governo João Goulart, o que punha rédeas em nosso deslumbramento revolucionário juvenil. Muitos achavam inconcebível os velhos generais abrirem as portas do poder para sargentos, políticos de esquerda, “empresários progressistas”, estudantes e camponeses sem terra. Nossos ideólogos no PCB ensinavam que a primeira fase da revolução seria em aliança com a burguesia nacional.

Contava-se, de igual, com a estabilidade do governo Jango, assentado em larga maioria no Congresso e festejado pelo apoio popular, apesar da campanha ferrenha que lhe movia a grande imprensa, sempre reacionária. E, sobretudo, confiávamos na sua base de sustentação na caserna, que se dizia forte. Era o tal do “dispositivo militar do general Assis Brasil”.

O país discutia as reformas de base, a plataforma-síntese de nosso projeto e o divisor de águas da política. O país era uma só assembleia, e discutia-se seu destino em auditórios por todo o país. Certamente alcançou-se, naquela altura do século passado, o momento de maior nível de educação das massas e organização popular. Eram os nossos anos dourados, após o sucesso de JK; os anos do Cinema Novo, de Maria Esther Bueno, nossa tenista campeã, do Brasil bicampeão mundial de futebol ao lado do Brasil das ligas camponesas, da UNE, da Frente Parlamentar Nacionalista, das centrais sindicais em ebulição e do crescimento do movimento popular. Mesmo a Guerra Fria nos favorecia, e foi um marco a viagem de Iuri Gagarin.

Mas a lua tem duas faces: nossos avanços eram acompanhados pelo avanço dos centros da reação que se espalhavam Brasil afora, como o IBADE (encarregado de financiar as candidaturas de direita nas eleições brasileiras) e o IPES (formulador da doutrina golpista). Nas eleições de 1962 a direita comprometida com o golpe havia eleito os governadores de São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais, o chamado centro dinâmico do país, aproximadamente 40% da população e 60% da economia nacional.

A partir de 1963 sentíamos, sem clareza quanto ao significado, que algo impalpável se movia no quadro tradicional da política brasileira: a rebelião dos sargentos em Brasília e o motim dos marinheiros no Rio. Eram fatos bastante objetivos para serem ignorados.

O recuo de Jango, retirando do Congresso o pedido de decretação do estado de sítio, que dizia amparado no apoio dos ministros militares e com o qual pretendia atingir o governador Carlos Lacerda, da Guanabara, seu principal opositor, era evidente indicador de conflito no seu núcleo mais íntimo: contra o estado de sítio moveram-se Arraes e Brizola, a Frente Parlamentar Nacionalista, a UNE e as centrais sindicais.

Consolidava-se a ideia da iminência de um golpe, quando sonhávamos com a revolução. No Rio, ex-vice-presidente da UNE, fui conversar com José Serra, então presidente da entidade e quadro político influente. A conversa confluiu para o plano nacional, e para o golpe, que não se expunha, mas se sentia. Indagado sobre sua visão, o líder estudantil que seria ministro de Estado no governo FHC e governador de São Paulo, respondeu algo que ainda relembro, passados tantos anos: “- O golpe será dado. A dúvida é simplesmente sobre a iniciativa, se da direta ou da esquerda”.

Voltaria a ver o Serra de longe, daí a poucos dias, discursando no palanque do comício de 13 de março. Passadas dezenas de anos, nos reencontramos no Recife, no velório de Miguel Arraes. Ele não se recordava do diálogo. Mas, de fato, a esquerda, ou pelo menos setores da esquerda vinculados ao Partidão, já contavam com o golpe, a nosso favor, mas comandado pelos generais, e cuidavam de tomar assento. Estava na esquina o governo democrático-nacionalista e era a hora de negociar sua composição.

Algo como dois dias passados do encontro com Serra, deparo-me com Antônio Carlos Peixoto, intelectual de primeira linha do PCB, assistente da fração da UNE: nosso amigo Fco. Faria, vice-presidente, iria representar a entidade em reunião que começaria a definir nosso futuro ministério. O Partidão teria dois votos, o seu, da organização, e aquele que chegaria no galope da entidade estudantil. O golpe não seria das Forças Armadas, nem contra o povo.

O comício da Central foi um marco e mudou muitas cabeças, inclusive a minha. Antes reticente em relação às vias de conquista do poder, passei a me incorporar ao contingente dos conquistados pela demonstração de força para uma imediata e irresistível conquista do poder.

No dia 17 de março, havia o que comemorar. Era o aniversário do Partidão (que desfrutava de plena liberdade e de uma legalidade fatual), e a festa foi uma conferência de Prestes, nosso secretário-geral e líder quase mítico. A “festa” foi no 9º andar da ABI, e constituiu de longa e didática preleção sobre o processo social brasileiro e a presença dos militares em nossa história. Relembro, de memória, três pontos que ainda hoje considero os de maior relevo: I) os militares brasileiros eram oriundos da classe-média, e por isso refletiam o sentimento nacional; II) as forças armadas eram legalistas e democráticas, e, corolário, III) não havia o menor risco de golpe de Estado militar. O que, dito pelo grande comandante, valia para nós como verdade irrefutável.

Saímos empolgados e fomos tomar chope no bar Vermelhinho, bem em frente à ABI. No dia seguinte, Prestes repetiria sua pregação no grande comício do Pacaembu, em São Paulo. A tradução de tudo isso foi a absoluta desmobilização das forças populares.

Dois dias passados subíamos ao Nordeste, Marcos Lins, dirigente da AP, eu e outro personagem cuja imagem e nome a história e a memória não registraram. Marcos Lins levava cartas para dois governadores da região, e eu para o governador Virgílio Távora, do Ceará, com quem me encontrei logo na noite de minha chegada. Por indicação do movimento sindical e partidos de esquerda, eu exercia, a partir de 1963, uma assessoria política no gabinete do governador, quadro da UDN, amigo a um só tempo de Jango (era o que se dizia) e do banqueiro Magalhães Pinto, governador de Minas Gerais e figura das mais decisivas na maquinação do golpe – que, não sabia Prestes e não sabíamos nós, logo saltaria às ruas.

No dia seguinte, estou restabelecendo contatos e tentando montar uma linha de informações, quando sou chamado ao gabinete do governador. Quando entro em sua sala, ele está saindo deu uma pequena cabine que mandara instalar, “para ter mais privacidade em suas ligações “com Brasília e Rio”. Após os rápidos cumprimentos de praxe, dirige-se a mim: “- Doutorzinho (assim ele identificava todos os colaboradores jovens), seu amigo Jango acaba de nos foder: mexeu na única coisa em que não se mexe neste país, a hierarquia militar (o governador se referia ao discurso do Presidente aos sargentos no Automóvel Clube do Rio, na noite do dia 30/3). O golpe está dado e eu não posso fazer nada por vocês Vou tentar salvar meu mandato. Saia daqui e vá avisar aos seus amigos”.

Saí, atordoado. Mesmo assim falei com quem pude, saiu de circulação quem pôde, mas não havia nenhuma retaguarda, nem opção tática: estávamos preparados, política e estrategicamente, tão-só, para assumirmos a direção revolucionária. Caminhávamos ou corríamos sem direção, como formigas expulsas do formigueiro. E houve muita resistência, talvez de ordem mais psicológica do que política, a aceitar a desagradável informação que eu levava. Ela desmontava as fantasias de há pouco. Estávamos todos sem chão, e, pior de tudo, sem saber o que fazer, sem ter a quem consultar. No auditório da Fênix Caixeiral, no centro de Fortaleza, antigo e liberal estabelecimento de ensino fundado por comerciários, sucediam-se discursos inflamados. O sentimento geral era de um repeteco de agosto de 1961 e da resistência democrática. Mas não surgiu um novo governador Brizola, não teve voz uma nova Campanha da Legalidade.

No dia seguinte dessa longa noite, chego cedo à Faculdade de Direito e me dou com algo que semelhava uma festa. Os companheiros comemoravam o levante do general Mourão, porque, diziam, era o que “o gal. Brasil esperava para cortar a cabeça dos golpistas”. Achei mais prudente ir à casa do governador. Era fundamental obter informações. Lá o encontrei pressionado por uma delegação de empresários que cobravam uma declaração sua de apoio ao golpe e promessa de repressão a qualquer agitação popular. Imperturbável, Virgílio, coronel do exército, repetiu não poucas vezes que seu papel era o de garantir a ordem, o que faria. Depois se soube que oficiais do 23º Batalhão de Caçadores, que seria o centro da repressão, trabalhavam naquele transe pela sua cassação. Mas o governador era sobrinho do Marechal Juarez Távora.

Finda a pressão dos endinheirados, ficamos ali, alguns políticos e auxiliares diretos do governador. Tentando recuperar o ânimo enquanto via diante de mim o desmoronamento de um sonho que até há pouco tínhamos como realizado, virei-me para meu amigo deputado Pontes Neto, um quadro de escol, e comentei, querendo ser otimista, mas carente de convicção, e ao mesmo tempo em busca do que quer que fosse que me tirasse das previsões pessimistas que me assaltavam: “- Pontes, isso é como um mandato que nos foi tomado. Em cinco anos tudo volta ao seu leito…” “- Não… – respondeu o sábio parlamentar – isso é coisa para dez a quinze anos”.

Pontes seria um dos primeiros presos. Com o peso da realidade me oprimindo, tomei o rumo que as circunstâncias me permitiam, mas até minhas mãos chegou, na manhã seguinte, o jornal O Estado, com meu retrato na capa ao lado do deputado Moisés Pimentel, “empresário progressista”, em um encontro com camponeses promovido pelo Círculo Operário Católico, e a legenda: “Comunista até no gabinete do governador”. Ficou claro para mim que o alvo era o governador, e tive tempo para entender que Fortaleza ficara muito pequena.

Logo chegaram os idos de abril, que pareciam não ter fim pois não nos deixavam uma só fresta para contemplarmos o horizonte. Nossas dores falavam de dias luciferinos, e falavam claramente as imagens de Gregório Bezerra, espancado, torturado, seminu sendo arrastado, corda no pescoço, exibido como presa de carniceiros pelas assustadas ruas do Recife. Depois, muito depois, seriam as histórias de Mário Alves, nosso dirigente (torturado até a morte nas dependências da Polícia do Ex;ercito, no Rio de Janeiro), e do menino Stuart Angel (trturado até a morte nas dependência da Base Aereo do Galeão.

Dois saudosos amigos, Luciano Magalhães e Aquiles Peres Mota, percorriam de carro as saídas de minha cidade.

Sair da versão mobile