No ano do verdadeiro folhetim Vale Tudo, aquele em que Odete Roitman realmente se finou, o Brasil começava a embandeirar as ruas e a ensaiar os primeiros passos para a valsa da democracia. Estávamos em 1988, três anos pós à redemocratização iniciada uma década antes e que foi conduzida com pulso firme pelos generais que governavam o Brasil. O processo democrático começou em 1985, com a posse de José Sarney, candidato da oposição no então Colégio Eleitoral.
Sarney foi empossado em decorrência da morte de Tancredo Neves, o vencedor da disputa com Paulo Maluf. Os percalços políticos foram numerosos desde a redemocratização. Um presidente (Fernando Collor) teve o mandato cassado antes mesmo de completar dois anos no cargo. O segundo impeachment, de Dilma Rousseff, teria sido causado pelo conluio espúrio entre o vice de Dilma, Michel Temer, e a direita liderada à época, entre outros, por Eduardo Cunha (RJ) e Arthur Lira (AL).
Nesse período, começava a tomar forma o caranguejal que até hoje comanda o Congresso Nacional, particularmente a Câmara dos Deputados. Um dia, todos esses episódios serão contados pelos livros de história com a isenção desejada pela maioria da população brasileira. Por enquanto, os autores moldam conforme suas conveniências a história do que aconteceu na política nacional após a redemocratização. Exatamente como ocorreu com o novo fim de Vale Tudo, exibido semana passada.
Odete Roitman não morreu, virou a mocinha do novelão e a autora, Manuela Dias, preferiu deixar Heleninha, a filha mais velha de Odete, pagar por um crime que ela não cometeu. A moça inverteu a ordem, valorizou quem não devia e crucificou aquela que só queria viver. Sem preocupação alguma com a margem de erro, definiria Odete Roitman e a novela como a explosão de uma estrela no quase colapso do Brasil. É o que se verifica com o vai e vem da democracia desde a ascensão de Jair Bolsonaro ao imerecido cargo de presidente da República. Acho que ela é perene. No entanto, tudo pode acontecer até que Jair Messias volte ao pó.
Por mais que os bolsonaristas odeiem a frase, não me canso de dizer que o vilão que virou herói voltará ao limbo, lugar que, na teologia católica romana, é habitado por almas privadas da alegria da existência com Deus. Para os bolsonaristas, que se dizem mais democratas do que aqueles que viveram e morreram pela democracia, o sistema serve apenas de simbologia para falsos profetas. Também invertendo a ordem, eles não dormem antes de rogar milhões de pragas ao presidente Lula e de pedir preces de salvação para os “democratas” Jair e Eduardo Bolsonaro, Augusto Heleno, Braga Netto e Donald Trump.
Como não acredito na salvação de almas penadas, entre opções igualmente desfavoráveis, prefiro empunhar a espada para não ter de carregar a pesada cruz da tirania. Digo isso porque, embora reitere que não sou vinculado ao PT, estou Lula por uma razão que considero inquestionável: ele é um democrata na essência e defensor da convivência harmoniosa das diferenças, o que me parece improvável nesta década. Como folhetim inacabado, a história de Jair Bolsonaro virou treta de festa pobre, armada para convencer o povo disposto a pagar sem ver. Depois do clima entre Lula e Trump, a menos que um anjo desmiolado desça à terra, a esperança bolsonarista de que presidente dos EUA livraria Jair Messias do xilindró derreteu. Isso é, de fato, uma mudança climática.
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Mathuzalém Júnior é jornalista profissional desde 1978
