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Urna eletrônica vira pesadelo de quem vê derrota

Antes mesmo de chegar como porta-voz ao Tribunal Superior Eleitoral (TSE), em junho de 2001, já tinha certeza de que, para esquecer de vez o passado de fraudes e do coronelismo, seria impossível realizar eleições seguras no Brasil sem as urnas eletrônicas. Sob o comando do ministro Nélson de Azevedo Jobim, a Justiça Eleitoral e o país se preparavam para o primeiro pleito geral com100% de maquininhas ligadas a uma tomada qualquer, sem ligação com a internet e com razões de sobra para que partidos, candidatos, fiscais, mesários e eleitores acreditassem na confiabilidade de um novo sistema de votação que, poucos anos depois, foi cedido, emprestado ou copiado por vários países latino-americanos, sempre com a intermediação da Organização dos Estados Americanos (OEA).

Disposto a conhecer as entranhas do equipamento, único e de administração exclusiva da Justiça Eleitoral, li tudo que me apresentaram. Obviamente, a intenção era saber tudo para não dizer bobagens quando questionado sobre a lisura e segurança de uma engenhoca que seria apresentada meses depois à totalidade do eleitorado nacional. Um dos primeiros passos – último para garantir o que já imaginava – foi ser informado que o programa que roda na urna eletrônica (o tal software) recebia – e recebe – assinaturas eletrônicas de um ministro do TSE, do procurador-geral da República, do presidente do Conselho Federal da OAB e dos delegados indicados pelos partidos políticos. Tudo isso em cerimônia pública, inclusive com a presença da imprensa. Para violar o programa, só quebrando uma das chaves eletrônicas, ação que ficaria registrada.

Na oportunidade, o antigo e respeitado TSE dispunha de uma acanhada, mas suficiente sede. Era proporcional à sua instalação em Brasília, quando a cidade tinha expectativa de atingir 500 mil habitantes no ano 2000. Ledo devaneio dos criadores. Por conta dos megalomaníacos, nos 500 anos do Brasil a capital alcançou a expressiva marca de quase dois milhões de pessoas. O “velho” predinho era composto de dois andares, um térreo e um anexo para estrutura de tecnologia, a principal da máquina eleitoral. Nesse espaço cabiam os sete ministros, dezenas de servidores, assessores temporários, sala de toga e um tímido e funcionalíssimo plenário, que, avaliado por alguns como pequeno no tamanho, gerou grandiosas decisões e numerosas e históricas cerimônias, destacando-se as diplomações de Fernando Collor de Mello, Fernando Henrique Cardoso e Luís Inácio Lula da Silva, em 2002.

Dali, saíram valiosas informações para céticos, negacionistas e defensores da urna eletrônica. Apesar do nome estranho, uma delas (a zerésima) até hoje é um dos principais alicerces da impenetrabilidade do equipamento. Cada urna emite uma zerésima no início da votação. Esse documento indica não haver voto registrado na máquina até aquele momento. No fim da votação, é emitido, publicado e distribuído a quem quiser um boletim. Portanto, de posse desses boletins qualquer candidato ou partido terá facilidade em saber o resultado das eleições. Para isso, basta uma simples operação aritmética. Nada disso é novo. Falo, ouço e leio a mesma coisa há pelo menos 20 anos. Curiosamente, os questionadores do sistema eletrônico de votação, incluindo candidatos, são sempre os mesmos. Pior ainda é que, entre esses, todos venceram os pleitos que disputaram.

O presidente Jair Bolsonaro é o último bastião a se pronunciar contra a segurança da urna eletrônica, notadamente em favor do voto impresso. O problema é que não há problema. Tanto que, apesar das críticas, ele insiste em negar provas do que diz. Ou seja, como nas melhores conversas de bêbados, fica o dito pelo não dito. Em outras palavras, o que eu disse é que eu não disse nada. Sintetizando ainda mais, parece prazeroso para um patriota, um nacionalista com faixa presidencial, falar mal do que é genuinamente nacional. Prefiro ficar com as posições de quem já esteve dentro das quatro linhas como árbitro, jogador ou assistente. Juízes da disputa eleitoral em períodos distintos, Carlos Velloso, Marco Aurélio Mello e Nélson Jobim mantêm a mesma opinião crítica às críticas dos críticos de plantão.

Ministro aposentado do Supremo Tribunal Federal (STF), Carlos Velloso considera “simplesmente lamentável” que o presidente Jair Bolsonaro questione a integridade do processo. Ainda na ativa no STF, Marco Aurélio Mello considera o voto impresso desrespeitoso à Constituição, porque põe em risco o sigilo do voto. Em 2002, Nélson Jobim, também aposentado do STF, mostrou ao Brasil e aos observadores mundiais todos os inconvenientes da experiência. Além de gerar atrasos na votação, consequentemente na apuração, a iniciativa não agregou nenhum valor em termos de transparência ao processo. Repetindo o que disse Jobim à época, havendo necessidade de algum tipo de fiscalização, de um anti-dopping do processo, que isso seja feito de forma eletrônica, e não impressa.

É claro que as suspeitas sem provas de Bolsonaro mexem com o imaginário do eleitor. Entretanto, o imperador povo já começou a perceber a balela e parece estar decidido a deixar em banho maria a escolha do melhor candidato para 2022, principalmente agora que o capitão encontrou alguém do seu tope para disputar o principal assento do Palácio do Planalto. Em plena evolução tecnológica, sou obrigado a concordar com o atual presidente do TSE, ministro Luís Roberto Barroso, para quem retroceder ao voto impresso é o mesmo que aposentar o pen drive e tentar recuperar na lixeira as fitas VHS e o videocassete do século XX. Em palavreado rocambolesco, corro (ou corremos) o risco de assumir de vez o complexo de vira-lata que tanto condeno.

Talvez ainda tenhamos uma chance de encerrar esse jogo antes de o presidente novamente recorrer ao VAR. Com as cabeças embaralhadas pelo hábito de fazer tudo que seu mestre manda – até mesmo avaliar como petista todo ser humano que veste vermelho ou de comunista quem tem um automóvel encarnado -, os bolsonaristas precisam ser informados sobre a linguagem criptografada da urna eletrônica, que torna a escrita ininteligível para os que não tenham acesso às convenções combinadas. Penso que, sem trocadilho, há urgente necessidade de uma campanha para explicar aos apoiadores do presidente da República que a criptografia não morde, não mata ou beneficia A ou B. Pelo contrário. A deputada Biz Kicis (PSL-DF), que acusa, mas não dá nomes da máfia do TSE, e Jair Bolsonaro, com suas oito eleições vitoriosas, querem tumultuar, embora tenham certeza de que o mecanismo impede que o restante do abecedário se junte e decida retroceder algumas décadas, numerosos conceitos e vária tentativas de fraudes. Pode ser que, avessos ao que dá certo, já estejam procurando uma desculpa antecipada para a falta de votos que se avizinha.

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