Primeiro amor
Dói muito quando a gente perde as escamas da ilusão
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Quebrando um longo isolamento, o conde Roger preparava-se para regressar à corte de seu rei. Recebera dias antes um convite para a recepção em homenagem a Clotilde, tia do monarca e rainha-viúva do país vizinho, que visitava pela primeira vez a terra natal.
Clotilde, seu primeiro amor. Claro que iria!
Olhando-se no grande espelho do salão do castelo, Roger não viu a imagem de um jovem entregue à descoberta dos prazeres e desafios da vida, nem a de um homem calmo e confiante, na força da idade. Deparou-se com a figura de um senhor bem-apessoado, ainda atraente, de cabelos grisalhos que começavam a se tingir de branco, vestido em um elegante traje de corte.
Depois de ordenar aos servos que o acompanhariam que preparassem aos cavalos, o conde passou a reviver os beijos tórridos que trocara, aos 20 anos, com a linda adolescente de 16. Mas não foram além disso, tinham consciência de que sua união era impossível. Príncipes nascem para governar – ou para conspirar contra os irmãos mais velhos –, princesas são instrumentos para construir ou cimentar alianças dinásticas.
Assim, aos 17 anos, Clotilde foi dada em casamento ao herdeiro do trono do território vizinho. Roger não compareceu ao casamento, os beijos loucos, trocados na véspera da cerimônia, foram sua última recordação de seu primeiro amor, seu único amor. Ele nunca mais a viu. E jamais se casou.
A viagem foi rápida, quatro horas de cavalgada em marcha moderada. Depois de trocar o traje de montaria pelas roupas de cortesão, Roger ingressou na grande sala onde se encontrava seu rei, sobrinho de Clotilde. Centenas de velas iluminavam o ambiente, multiplicado por grandes espelhos. Ele entrou na fila para cumprimentar a visitante real.
Ao se aproximar de Clotilde, inclinou-se para beijar-lhe a mão e murmurar palavras formais de boas-vindas. Nesse momento, a emoção fez caírem algumas escamas de ilusão de seus olhos.
– Roger, meu primeiro amor! – murmurou Clotilde, enquanto sorria para ele, carinhosamente.
Ele a olhou bem. Custou a acreditar no que seus olhos viam.
– Uma véia! Tá de porre?? Sai pra lá, baranga!!!
Clotilde ficou branca como papel. No momento seguinte, porém, enrubesceu com o ultraje, sacudiu-o com raiva, apontou para um dos espelhos do salão e ordenou:
– Olhe pra você, véio grosseiro!!!
A sacudidela fez caírem mais escamas de ilusão de seus olhos, e Roger viu a imagem de um velho de poucos cabelos brancos, em um traje de corte antiquado, fora de moda havia pelo menos uma geração. Se os cabelos escasseavam, os dentes, soube na hora, eram menos ainda. O choque fez tombarem as últimas escamas de ilusão.
Sim, havia uma recepção, uma festinha, em uma casa de classe média pra lá de decadente. Canapés e bolo, cerveja e refrigerante era tudo o que havia, e oferecido com parcimônia, para não faltar. Reuniu coragem para olhar-se no espelho (sim, havia um espelho, um só) e viu um velho decrépito, de rosto enrugado e braços flácidos, vestido com roupas puídas.
Sim, Clotilde fora seu primeiro amor. Sim, ela se casara e partira, ele permanecera fiel a sua memória. E, reconhecia agora, enlouquecera pouco a pouco, Dom Quixote da paixão. Sim, ela se chamava Clotilde mas o nome dele não era Roger, nem sequer Rogério, versão lusitana do francês. Chamava-se Aderbal.
Sem se despedir, tropeçando nos móveis, Roger/Aderbal deixou o lugar e voltou a pé para a casinha pobre em que vivia e onde morreria, em solidão.