Surpresas de um coveiro
Nem sempre quem pergunta o que não imagina ouve o que não quer
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Recentemente tive uma recaída profissional e resolvi voltar aos velhos tempos de repórter. Como o comportamento do povo mais simples sempre foi a alma de minhas matérias político-sociais, saí às ruas da periferia de Brasília com a intenção primária de entrevistar pessoas sobre pessoas. Meu objetivo era saber como os tipos supostamente menos esclarecidos se comportam diante de uma consulta direta a respeito do apoio físico, emocional e laboral a tipos conhecidos nacionalmente. Conforme as respostas, eu poderia avaliar e, quem sabe, escrever sobre o futuro dos citados.
Meu primeiro e único entrevistado foi suficiente para que eu tivesse a ideia exata de cidadãs e cidadãos públicos em condições de me representar politicamente em eleições vindouras. À frente de um homem com vestes humildes, sorriso largo, olhar fixo em mim e muita perspicácia, indaguei se ele trabalharia para o senador Flávio Bolsonaro. Com muito prazer, respondeu o simplório homem. E para Eduardo Bolsonaro? Claro que trabalharia. E o faria com muito prazer! Também trabalharia para Silas Malafaia? Com certeza. E feliz da vida! Faria até uma oração!
A pergunta final não poderia ter outro protagonista. O senhor trabalharia para o ex-presidente Jair Bolsonaro? Meu Deus! Encantadíssimo! Do fundo de minha alma. E não teria qualquer preocupação com minhas dores de coluna ou do nervo ciático. E para Luiz Inácio? Moço, sinceramente para o Lula eu não gostaria de fazer meu trabalho. Se tivesse de fazê-lo, seria com imensa tristeza. Talvez até chorasse junto dos familiares durante minha honrosa tarefa. Concluída a entrevista, agradeci a simpatia do entrevistado e iniciei o caminho de volta à redação.
Foi quando me lembrei de que havia esquecido de perguntar se ele era simpatizante da direita, da esquerda ou do centro. Consegui encontrar o sujeito já paramentado e pronto para iniciar mais uma jornada diária. Disposto a questioná-lo objetivamente quanto a uma provável linha ideológica, desisti ao percebê-lo entrando em seu pouco aprazível local de trabalho. Meu entrevistado era o coveiro do cemitério da cidade. Pensei, pensei e conclui que o risco de perguntar o que não quer é ouvir o que quer. Ou seria o contrário? A ordem do produto não altera os fatores. Acho que acertei errando de novo.
Antes de encerrar as atividades jornalísticas do dia, resolvi testar a inteligência dos periféricos. Rapidamente descobri que, mesmo sem a inteligência dos lordes e dos ricos, eles têm raciocínio muito mais rápido e inteligível do que os que se julgam mais capacitados. Perguntei a um cidadão simplório até na alma se ele sabia a razão para os combustíveis aumentarem tanto no Brasil. “Por que o governo tem posto”, respondeu meu interlocutor. Embora a resposta tenha sido uma surpresa, estiquei a pergunta na tentativa de dirimir a dúvida. E onde o governo tem posto? “Em nós!” Encerrei a entrevista para evitar que ele tivesse certeza de que o meu também estava na roda. Novamente fui agradavelmente surpreendido pelo que ouvi.
Ameacei falar de Donald Trump, mas parei achando que era um tema probiótico e elitista demais. Fui pego pelo laço ao ser indagado sobre o recém-empossado presidente dos Estados Unidos. Me limitei a dizer que o republicano é o novo cara. Quase cheguei à lona quando, se antecipando ao meu suspiro, o parceiro do camarada do combustível ressignificou a resposta e emendou: “O mandato de Trump vai acabar, ele não vai fazer nada pelos norte-americanos e, de quebra, dará ao chinês Xi Jinping o título de “mais ‘maior’ do mundo”. Embora gramaticalmente incorreto, como discordar do superlativo no meio da rua? É o neologismo mais criativo que já ouvi contra os que gritam, xingam e matam em nome de ídolos e de mitos.
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Wenceslau Araújo é Editor-Chefe de Notibras