Sonho e memória
Lembranças de Ponta Negra, de Tereza, nos traços de Helena
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“As imagens escolhidas pela recordação são tão arbitrárias, tão estreitas, tão inacessíveis, como as que formara a imaginação e a realidade destruíra.” Marcel Proust, Sodoma e Gomorra, volume 4 de Em busca do tempo perdido.
……
Depois de várias décadas, Eduardo voltava a Ponta Negra, em sua opinião o mais bonito trecho do litoral do município de Maricá, colado a Niterói. Encantava-o as encostas de granito que avançavam pelo mar, característica do trecho mais selvagem da costa fluminense e, em especial, das praias oceânicas cariocas e niteroienses que se estendiam para o norte, até a Região dos Lagos. E havia também a vegetação de restinga, a mata atlântica, aquele areão sem fim, as casinhas e
barquinhos dos pescadores…Tudo isso compunha um cenário que permanecera vivo em sua memória, no decorrer de mais de três décadas de afastamento.
Mas as recordações não são alimentadas apenas pela visão de uma paisagem deslumbrante; todos os sentidos contribuem para elas. No caso do escritor francês Marcel Proust, foi o aroma e o sabor de uma madeleine, um bolinho feito com ovos e raspas de limão, que o lançara na elaboração do monumental romance ‘Em busca do tempo perdido’. No caso de Eduardo e suas lembranças de Ponta Negra, a madeleine proustiana era um camarão na brasa inigualável, o melhor que comera em toda a sua vida.
Na verdade, todos os sentidos eram mobilizados nesse exercício da memória. E todos esses convergiam para a figura de Teresa, sua paixão na mocidade.
Ah, Teresa! Ele a amara loucamente, e fora amado na mesma medida. Os dois eram de Niterói, mas sempre iam a Ponta Negra. Aventureira, ela enfrentava o mar quase sempre bravio. Depois, havia o camarão, mil beijos e ele se deitava em seu colo como um Jesus de Michelangelo, fazendo dela uma Pietà ou uma Maria Madalena. E faziam amor no areão, depois que a noite caía e os turistas iam embora.
Ele recordava tudo isso. E o que havia esquecido, recriava com a imaginação. Foram essas lembranças, esses sonhos, que o arrastaram de volta a Ponta Negra, décadas depois de a vida tê-lo afastado daquele local paradisíaco, tê-lo afastado do colo de Teresa.
Parou o automóvel, saltou, trancou-o, pisou na areia – e as desilusões começaram. O granito e o mar estavam ali, a vegetação também, assim como os barcos de pescadores, mas o resto, o essencial… Envelhecera, não ousava enfrentar o oceano, nem estava com traje de banho. Procurou o botequim dos camarões, não existia mais. Pediu a iguaria em outros bares, não havia, não se pescava mais o crustáceo por ali. E, sobretudo, não havia mais Teresa.
De súbito, viu uma senhora rodeada de crianças, provavelmente seus netos. Algo em seu rosto avivou antigas memórias. Aproximou-se e perguntou, hesitante:
– Te…Teresa?
A mulher, de uns 60 anos, balançou a cabeça em negação.
– Não, meu nome é Helena. Mas tive uma prima chamada Teresa muito parecida comigo.
Seu rosto iluminou-se, como se lembrasse de algum acontecimento feliz, e perguntou-lhe.
– O senhor é o Eduardo?
Ele fez que sim com a cabeça, emocionado demais para falar.
– Ela sempre me falava de seu romance com um Eduardo, deve ser o senhor – ele assentiu em silêncio. – E de como vocês haviam feito de Ponta Negra seu refúgio. Coitada, morreu cedo, há cinco anos.
Ele não respondeu. Olhou-a em silêncio e afastou-se, de volta ao carro, de volta a uma vida de velho, sem Ponta Negra, sem camarões eduardianos – versão local das madeleines proustianas – sem Teresa.