Mais um capítulo?
O luto da escrita e da leitura, despido de ilusões
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Escrever é uma atividade solitária, eu sempre tenho dito. Mas, enquanto nos isolamos para darmos vida às personagens e cenários de nossa escrita, um mundo absolutamente rico, povoado de muitas histórias, sensações e ideias nasce e se amplia dentro de nós.
Ninguém permanece como era antes de ler uma história. Seja um romance, um conto, um poema – absolutamente sem a intenção de fazer hierarquia entre essas formas de expressão literária – aquilo pode nos tocar de uma forma particular e, por vezes, nem notamos enquanto estamos lendo ou acabamos de ler. Dias depois, uma paisagem, uma palavra dita, uma ideia nascida ao acaso, e evocamos o que havíamos lido num parágrafo aleatório, num volume já repousando na estante, numa estrofe perdida.
O efeito da leitura pode não ser imediato, mas nos chega, mais cedo ou mais tarde. Sempre chega.
Como qualquer outro leitor, quando me dedico à leitura de uma obra de ficção, costumo “mergulhar de cabeça” na história. Sou absorvido de tal forma pelo enredo, que costumo fazer pausas em que pesquiso o contexto histórico do livro, a biografia de seu autor, e até a época em que o drama se passa. É sempre uma experiência enriquecedora, especialmente quando conheço um autor novo, ou a ficção é ambientada num tempo ou região que desconheço.
Maravilhei-me com as agruras e belezas da Idade Média quando li, de Umberto Eco, “Baudolino”. Revisitei as paisagens mineiras e as tramas familiares quando, pela primeira vez, folheei “Baú de Ossos”, de Pedro Nava. Integrei-me ao quotidiano de uma grande e soturna fazenda de café, e com secretas angústias que ela guardava, ao me deparar com “A Menina Morta”, de Cornélio Pena. Recentemente, tive um prazer autêntico ao viajar pelo panorama mental de Paulo, no “S. Bernardo” de Graciliano Ramos. Senti o sobressalto da aventura e o asco pelas baratas quando, de capa a capa, vivenciei a longa viagem que J.A. Leite Moraes nos relata nos seus “Apontamentos de Viagem”. Minha vida tem sido uma interminável viagem através de livros.
E, ao fechar a capa e dar a leitura por encerrada, uma sensação estranha se apodera de mim, como se estivesse vivenciando um período de luto. Luto por tantas pessoas que existiam concretamente em minha mente e jamais irei rever, a não ser que faça releituras, as quais, invariavelmente, levarão a novas ideias e novas conclusões.
No ofício de escritor é assim também.
Criamos personagens, mergulhamos em seu mundo interno e externo, damos vida às suas ideias, falas, comportamentos. Como os antigos deuses, por puro capricho, podemos levá-los à glória ou à danação, apenas movendo a caneta ou digitando as teclas diante da tela do computador. E, de repente, a história chega ao final. Conclui-se. Alcança-se o fim pretendido.
Para que mundo secreto irão essas personagens, cheias de vida e consciência, às vezes dotadas de comportamentos quase autônomos ou surpreendentes, mesmo para nós que, escrevendo, temos a ilusão de controlá-los, ao passo em que, não raro, são eles que nos conduzem?
Eu, que nunca me aventurei a escrever no gênero romance, sinto nostalgia das personagens e cenários de meus pequenos contos. O que teria sido se a história se desenvolvesse um pouco mais, ou se aprofundasse o caráter psicológico da trama e dos que a vivenciaram?
Às vezes, vem-me a vontade de retomar certas histórias, o que eventualmente fiz, apenas para continuar do ponto de partida, dar-lhes uma sobrevida ou uma segunda chance, a possibilidade de corrigir atitudes ou a punição devida, repensarem a própria existência, vista com a estranheza de concluir como um personagem que inventamos pode ser, de nós, tão diferente.
Lembro quando, em 2004, ainda no princípio de minha vida profissional, me tornei personagem do romance “Despido de Ilusões”, do meu amigo Eduardo Martínez.
Fui um de seus primeiros leitores, e li-o de um fôlego, durante a madrugada, assim como, na adolescência, costumava fazer com uma nova história de Sherlock Holmes ou Hercule Poirot.
Não previa, ali, os laços literários que, anos mais tarde, me uniriam ainda mais ao meu amigo.
Terminar aquele livro foi me despedir de uma vida paralela, de aventuras que, como advogado, jamais alcancei. Mas sinto, às vezes, como se um outro “eu” estivesse ali, por entre as páginas do livro fechado, espreitando, apenas à espera de uma segunda chance para sair por aí e viver tudo diferente do que tenho feito.
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Daniel Marchi é autor de A Verdade nos Seres, livro de poemas que pode ser adquirido diretamente através do e-mail danielmarchiadv@gmail.com