Mortos
Chico e o avô, cada um no seu quadrado (mas um deles, vivo)
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“Pela primeira vez compreendi que aquele olhar fixo e sem lágrimas […] que tinha minha mãe desde a morte da minha avó, estava detido naquela incompreensível contradição da lembrança e do nada. […] Mas sobretudo, logo que a vi entrar com o seu manto de crepe, apercebi-me […] que não era mais a minha mãe que eu tinha diante de meus olhos, mas a minha avó.” Marcel Proust, Sodoma e Gomorra, volume 4 de Em busca do tempo perdido.
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À semelhança do protagonista do filme O sexto sentido, Chico via gente morta. Começara na infância, com a bisavó recém-falecida. Quando percebeu que os pais não viam o que ele via, retraiu-se, tratou de disfarçar, e em boa medida conseguiu. Teve uma adolescência miserável, povoada de fantasmas. Ao chegar à idade adulta, havia se tornado um expert no que chamava, brincando (mas só consigo mesmo) de mortologia.
Chico percebeu que os morrentes – em oposição a viventes – preenchiam diversos nichos do além-túmulo. Havia os que não se resignavam a partir, apegados a algum evento traumatizante, e fantasmavam. Ele sentia uma pena infinita desses abantesmas, em sua maioria condenados a reviver o instante da própria morte. “Tadinhos. Não por acaso, soltam uivos e lamentos de cortar o coração”, pensava sempre.
Mas esses eram minoria. Influenciados pela religião que adotavam em vida, os recém-falecidos costumavam ir pro céu ou pro inferno. Quer dizer, criavam para si próprios o que imaginavam ser esses dois planos opostos, e ficavam bestamente tocando harpa junto a anjinhos rechonchudos, ou pior, infligiam a si mesmos castigos atrozes.
“Imbecis”, repetia Chico. “Se dissessem ‘hora de ir para outro plano’, os do suposto céu evoluiriam. E os do inferno, então? Se dissessem apenas ‘basta!’, seus tormentos cessariam na hora”.
Havia um pequeno grupo cujas crenças admitiam formas variadas de evolução espiritual. Esses partiam, não felizes (a frase “partir desta para melhor” é mais que um absurdo sem nome, é um escárnio), mas resignados. Para onde? Chico não sabia e não fazia a menor questão de conhecer esses mistérios.
E havia um último grupo, o dos mortos que não queriam morrer. Ou melhor, não queriam partir, ansiavam pela existência pálida, pela vida diminuída dos morrentes, e apegavam-se com unhas e dentes – unhas sujas e dentes podres – ao simulacro ao seu alcance. Para isso, manipulavam a culpa e a saudade dos parentes, iam conquistando posições e, certo dia, repartiam a carne com o vivente.
No caso do Chico, cujos pais haviam falecido cedo, o morrente recalcitrante foi o avô. Chico acompanhou as manobras do velho para ocupar um canto da casa, bem quieto, até acumular forças para investir contra ele. Pensou em um parasita que envolve uma árvore e suga-lhe a seiva. Mas ele não era uma árvore, tinha consciência do que se passava.
Lembrou a seguir como Proust descreve, no romance Em busca do tempo perdido, a transformação de sua mãe, enlouquecida pela dor, na avó morta. “Era assim mesmo”, pensou. “Mesmo pessoas boníssimas, como a avó do romancista segundo sua descrição, tornam-se após a morte parasitas preocupados apenas em sobreviver a qualquer preço”.
Quando a sombra do avô, um pouco menos esmaecida, conseguiu aproximar-se dele, Chico deu-lhe um safanão e berrou:
– Vá pra outro plano, seu morto de bosta!
O morrente deu um grito de susto e afastou-se, choramingando, de volta para seu cantinho.
Desde esse dia, os dois repartem a casa. Chico até sente alguma saudade do velho, que o criou. Mas controla esse sentimento, pois sabe que servirá de apoio ao falecido para galgar posições em seu psiquismo e, quem sabe, algum dia, cravar-lhe unhas sujas e dentes podres, partilhando não a casa, mas seu corpo, sua força vital. Enquanto o novo momento de confronto não chega, neto e avô, o da vida plena e o da existência esmaecida, vão bem, obrigado.