Síndrome de Savant (II)
Enigma do gênio silencioso contém milagres do cérebro que afloram sem pressa
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Dizem que a mente humana é um universo em expansão. Alguns cérebros, porém, parecem ter suas próprias galáxias, girando em órbitas que a ciência ainda mal consegue rastrear. É o caso daqueles que vivem com a síndrome de savant, um fenômeno neurológico raro e fascinante, onde a genialidade se aloja, muitas vezes, em mentes rotuladas como “limitadas”.
Jonas, o pianista de São Martinho das Letras, que encantava a cidade sem jamais ter lido uma partitura, poderia ser comparado a Kim Peek, o norte-americano que inspirou o personagem Raymond Babbit, interpretado por Dustin Hoffman no filme Rain Man. Kim não sabia abotoar a camisa, precisava de ajuda para atravessar a rua — mas memorizava livros inteiros em uma hora. Tinha decorado mais de 12 mil volumes. Ele lia com os dois olhos ao mesmo tempo: o esquerdo percorria a página esquerda, o direito a página direita, e em segundos ele absorvia tudo. Um fenômeno chamado hipermnésia, tão raro quanto inexplicável.
Cientificamente, os savants desafiam a lógica da neurologia clássica. A síndrome, identificada no século XIX, é geralmente associada ao transtorno do espectro autista, mas pode também surgir após lesões cerebrais, principalmente no hemisfério esquerdo — responsável por linguagem, lógica e sequências. Curiosamente, quando essa região sofre danos, o cérebro parece liberar habilidades ocultas de outras áreas, especialmente ligadas ao hemisfério direito: arte, música, matemática, memória visual.
É como se o cérebro, diante de uma perda, reorganizasse seus recursos e abrisse janelas que em pessoas neurotípicas permanecem fechadas. Uma das hipóteses mais discutidas é a chamada teoria da desinibição do lóbulo temporal, que sugere que habilidades extraordinárias existem em todos nós, mas são inibidas pelo funcionamento “normal” do cérebro. Em um savant, essa “trava” cerebral se afrouxa.
Outro caso notável é o de Daniel Tammet, britânico diagnosticado com autismo e savantismo. Ele enxerga números como se fossem paisagens coloridas, cheias de textura e forma. O número pi, por exemplo, se apresenta para ele como uma sequência de colinas, vales e rios. Em 2004, Daniel recitou 22.514 dígitos de pi, de memória, durante mais de cinco horas. Além disso, fala mais de 10 idiomas, alguns aprendidos em questão de dias. Diferente de Kim Peek, Tammet consegue explicar como pensa — uma ponte valiosa entre o mundo neurodivergente e a ciência.
Pesquisadores ainda tentam responder: esses talentos surgem por compensação? Por neuroplasticidade? Ou são acessos diretos a áreas do cérebro que os demais não sabem usar? Há até mesmo quem se pergunte se todos temos, latentes, os talentos de um savant — bloqueados por filtros da consciência, como um rádio sintonizado apenas numa estação.
Mas enquanto a neurociência busca suas respostas, os savants continuam a nos ensinar, mesmo sem querer. Nos mostram que inteligência não é uma linha reta, mas um mosaico, uma rede complexa de dons e limitações. Que genialidade não se mede apenas por QI, mas também pela forma como um cérebro — ainda que calado — dança com o universo.
E assim, talvez o maior milagre da síndrome de savant não seja a memória infinita, a música sem partitura ou a matemática sem cálculo. Mas sim o lembrete de que dentro de cada mente humana — por mais diferente que seja — há algo de grandioso esperando para ser reconhecido.
