O outro bugio
Coisa lá do Sertão, seja alma ou assombração, mentira bem contada vira verdade
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Pela estrada de terra batida, que serpenteava feito cobra preguiçosa no meio do mato, avançava, em marcha pouco mais que resignada, um burro de pelo ruço, magro nas costelas e triste no olhar. Sobre ele, pendurado feito espantalho bem vestido, vinha um sujeito de fraque gasto, chapéu de abas largas, botinas encharcadas de lama seca e um semblante que misturava cansaço, desgosto e uma certa indignação contra os caprichos da natureza sertaneja.
Seu nome: Januário Monteiro, moço de letras, fidalgo de estudo, comissionado pelo Instituto Histórico e Geográfico do Império para o nobre ofício de registrar, com penas, tinteiro e papel, as paisagens, o falar, as gentes e os costumes das regiões longínquas desse vasto e misterioso Brasil.
Naquele dia, de calor brabo e céu azul de lascar, alcançava enfim as porteiras do arraial de São Bento do Sumidouro, vila esquecida pelo progresso, mas fervilhante de causos, crenças e assombrações que, segundo diziam, nem o diabo tinha coragem de conferir muito de perto.
Ao descer do burro, ajudado por um moleque magricela que sorriu mostrando os dentes brancos feito milho de pipoca, Januário respirou fundo e encarou o cenário: casas de pau-a-pique, algumas de adobe, outras mais abonadas de tijolo, uma igrejinha torta com a cruz meio bamba no topo e, dominando a paisagem, a imponente casa-grande do Coronel Ambrósio Peçanha, Barão do Sumidouro, senhor de terras, de gado e, dizem, também das vontades de meio mundo dali, daquela aristocracia rural, de unhas sujas e roupas desalinhadas, muito comum no interior do país.
O Barão, homem de porte largo, barriga avantajada e bigode que parecia duas vassouras de piaçava viradas pra cima, aguardava o viajante vergando um terno solto, de linho branco, recostado na varanda de sua casa, balouçando-se numa cadeira de palhinha, enquanto mascava fumo e enxotava mosca com um leque de folha de bananeira.
— Ora, ora… — rosnou entre dentes, levantando-se com esforço e estendendo a mão calosa — Se num é o dotô Monteiro! Seja bem-vindo vossa mercê a este pedaço de mundo esquecido, onde até as assombração têm conta na venda.
— Muito grato, sr. Barão… — respondeu Januário, apertando-lhe a mão com certo receio, olhando de soslaio uma galinha que, atrevida, ciscava-lhe as botas — Vim na missão de recolher informações sobre os costumes, as práticas, os falares e… quiçá, os mitos locais.
O brasonado puxou um banco, apontou pro viajante se sentar e, enquanto servia uma caneca de café ralo, sorriu daquele jeito que só velho matreiro sabe sorrir.
— Ah, pois então vosmecê vai ter serviço pra mais de mês, que aqui o mato é fechado, e as história… mais fechada ainda!
Fez uma pausa, olhou pros lados como quem verifica se ninguém escuta, e, baixando o tom, lascou:
— Ocê já ouviu falá… do bugio moqueado?
Januário arqueou as sobrancelhas.
— Perdoe-me… bugio… moqueado?
— Pois é, dotô… E cruzou os braços sobre a pança — Um bugio safado, ladino, sabido que só. Dizem que foi pego no laço, moqueado no varal, e nem assim morreu. No outro dia… tava lá, no alto da gameleira, cuspindo na cabeça do povo e… falando. Isso memo que vosmecê ouviu. Falando!
Januário ajeitou os óculos, puxou do bolso um caderninho de capa de couro e molhou a pena no tinteiro que trazia sempre consigo.
— Fascinante…! Isso parece indicar uma prática lendária, ou quem sabe, um fenômeno de… — buscava palavras —… de tradição oral popular, com resquícios de animismo e crenças totêmicas.
O barão gargalhou, batendo a coxa com força.
— Totêmico ou não, dotô… O bicho tá lá! Quem duvida… que vá no Capão das Almas… mas vá munido de reza braba, porque não é só bugio que mora por lá, não…
E, então, cruzando os braços e olhando o horizonte, encerrou:
— Aqui, seu dotô… até o mato tem mais história que muito livro seu da cidade.
A noite chegou de mansinho, derramando seu manto negro sobre o sertão, pontuado aqui e ali pelos lampejos trêmulos dos candeeiros e pela sinfonia dos grilos, sapos e bugios. Dos comuns, era de se presumir. Na varanda da casa-grande do Barão do Sumidouro, uma roda se formava como se fosse missa, mas em vez de padre, quem oficiava era a boa aguardente, a prosa ligeira e o cheiro de torresmo pururucando na gordura.
Ali estavam reunidos os figurões do lugar: o próprio Barão, sentado no centro da roda; Zezeca Bentinho, caboclo magro feito vara de pescar, chapéu enfiado até as orelhas e um cigarro de palha eternamente aceso no canto da boca; Dona Mundica, parteira, benzedeira e, segundo dizem, meio bruxa, meio santa, conforme o creio-em-Deus-padre de quem fala, o boticário Taveira e o Mamede, turco dono de um secos e molhados na vila. Havia mais uns dois ou três curiosos, além de Januário Monteiro, que observava tudo com aquele misto de fascínio e incredulidade típico dos homens da cidade quando se veem no meio de coisa que os livros não elucidam.
— Pois então, seu dotô… — começou Zezeca, ajeitando o chapéu — O sinhô quer sabê se é invenção? Pois não é, não, senhor. Bugio aqui não é bicho… é cristão disfarçado!
O povo riu, mas Dona Mundica ajeitou-se na cadeira, séria:
— E digo mais… Aquilo é coisa dos encantados. Não se pega, não se mata, nem se olha direito. Quem olha, endoidece… Ou, então, se enrosca com alma d’outro mundo sem saber.
Januário, equilibrando o caderno no joelho, fez cara de quem escuta e de quem, secretamente, não acredita em uma vírgula.
— Mas… perdoem minha insistência — aparteou —… como se deu o episódio do… moqueamento?
O Barão limpou a garganta, cuspiu de lado, com a precisão de quem treinou aquilo a vida inteira, e começou:
— Foi numa sexta-feira de treze, dia de lua cheia. Zezeca aqui pode confirmar…
— Aconfirmo, sim, senhor — acenou Zezeca, cheio de importância.
— Pois bem… Apareceu esse bugio atrevido, coisa mais do demo. Não era bicho comum, não… Era dado a mexer nas coisas dos outros. Roubava roupa no varal, fugia com as boneca das menina, pegava pinga do alambique, chicoteava as mula e até… — olhou pros lados, abaixando a voz —… até desvirginou um pé de milho! Um dia, me tomou um belo cachimbo de espuma do mar, que eu havia deixado esfriar em cima da escrivaninha.
O povo explodiu em risadas, enquanto Dona Mundica fazia o sinal da cruz.
— Eu mesmo disse — continuou o Barão: “Isso não pode ficar assim, não!” Aí pegamo o laço, eu, Zezeca e mais uns dois retireiro, e fomos no Capão. Os escravos sumiram. Pois o bicho tava lá, empoleirado na gameleira, rindo da nossa cara, cuspindo… E não é que o danado falou?
Januário desdenhou:
— Falou… o quê, exatamente?
Zezeca se adiantou, abrindo os braços, olhos arregalados:
— Disse assim, ó: “Ô, seus bobão, larga de sê besta que esse galho aqui tem dono!” — e ainda deu risada, cuspindo em nós e puxando dum pito!
— Aí, num deu outra — retomou o Barão. Arremessei o laço, Zezeca puxou, derrubamo o bicho, amarramo e levamo pra roça.
— E fizeram o quê? — perguntou Januário, anotando tudo.
— Moquiemo, uai. Fez-se um moquém, botamo o bicho no varal de pau roliço, fogo de lenha por baixo, e foi defumando, defumando.
Dona Mundica, de olhos embaçados, balançava a cabeça, como quem vê uma tragédia anunciada.
— Só que… — continuou o Coronel, baixando ainda mais o tom —… de madrugada, o fio do cão sumiu. A corda tava lá, a trave do moquém também. Mas o bicho… nada! Nem rastro. E no outro dia…
Zezeca completou, erguendo o dedo:
— No outro dia, tava na mesma gameleira, rindo da nossa cara e gritando: “Moquém de véio num segura bugio sabido, não, siô!”
Januário deixou a pena suspensa no ar.
— Isto é… Inacreditável!
— Pois num é? — respondeu Zezeca — E quem num credita… que vá no Capão das Almas a conferir!
O silêncio se fez por um instante, quebrado só pelo estalar da gordura na frigideira. Até os grilos pareceram se calar.
Dona Mundica, então, levantou-se devagar, pegou seu embornal de rezas e benzimentos, e sentenciou:
— Se for, que vá com reza forte… Porque naquele mato, seu dotô… tem mais do que bugio. Tem coisa que nem Deus olha sem acender vela.
O dia amanheceu com aquele céu de anil tão limpo que até parecia pecado ter nuvem. Mas, no terreiro da casa-grande, pairava um certo peso no ar — coisa que nem sol forte dissipava. Januário Monteiro, de botas lustradas pelo criadinho de dentro durante a noite, ajeitava seu fraque já mais puído do que digno, enquanto organizava no alforge o caderno, o tinteiro, a pena, um pedaço de pão dormido com carne de porco e, por precaução, um terço que Dona Mundica lhe enfiou no bolso.
— Isso é… como posso dizer… uma prevenção simbólica? — perguntou ele, ajeitando os óculos.
— É reza pra desviar coisa ruim — respondeu Dona Mundica, ajeitando o lenço na cabeça. — E num discuta, não… que discussão espanta a bença.
Zezeca já estava pronto fazia tempo: calça de saco amarrada na cintura, paletó de baeta, facão na mão, chapéu de palha e sorriso de quem ia mais pra se divertir do que pra guiar alguém. Dona Mundica os acompanharia, solene e protetora.
— Vâmo, uai… que o Capão não espera e nem gosta de quem chega depois do meio-dia. De tarde pra frente, as coisa lá fica esquisita.
A trilha começava apertada, atravessando um campo de capim gordura que batia na cintura. Por cima, o céu, por baixo, a terra vermelha, fofa, que se agarrava nas botas feito praga. As cigarras chiavam alto, e lá adiante, o capão se avistava como uma mancha verde-escura no meio do pasto seco, erguendo-se feito ilha de mata num mar de terra.
Conforme adentravam o mato, a luz do sol se filtrava em feixes tortos de árvores antigas, pintando o chão de dourado e sombra. O cheiro da mata era forte, mistura de folhas podres, seiva, cipó e bicho.
— Presta atenção, dotô… — cochichou Zezeca — Aqui, a mata escuta mais que gente. E se ela num gosta do que ouve… ela responde.
— Responde como? — perguntou Januário, puxando o lenço pra enxugar o suor.
— Depende… — disse Dona Mundica, com voz de quem fala coisa séria. — Às veiz responde com vento gelado… outras, com galho quebrando… e tem veiz que responde com sumiço.
Januário ajeitou os óculos, olhou pra trás, pensou no caminho de volta… e seguiu.
De repente, um estalo seco. Todos pararam.
— Ouviram? — sussurrou Zezeca. — Isso é galho quebrando… E não foi bicho leve, não…
Mais dois passos… e outro estalo. Depois, um som estranho, meio riso, meio grunhido, meio fala atravessada:
— Ô, cumpade… esse galho aqui tem dono, viu?!
Januário quase deixou cair o caderno. Olhou pra Dona Mundica, que apertava o terço, e pra Zezeca, que fingia procurar alguma coisa na ponta do facão, mas com os olhos arregalados feito boi na faca.
— Sai do galho, seu moço… que esse aqui num foi feito pra pé de besta, não! — gritou de novo a voz, mais perto.
Então, do alto de uma gameleira, algo se moveu. Galhos balançaram, folhas voaram e — PLOFT! — uma casca de jaca velha acertou bem no chapéu de Januário.
— Hômi da cidade num aprende, não… vem mexê onde num deve! — vociferou a voz, seguida de uma risada escandalosa, gutural e, sim, absolutamente… humana. Ou quase.
Zezeca fingiu puxar o facão, mas tropeçou de propósito, rolando no chão. Dona Mundica fez o sinal da cruz, deu dois passos pra trás e disparou:
— Vumbora, Zezeca! Isso aí num é bicho, nem é gente… é coisa do meio!
Januário, tentando segurar a compostura, anotou apressadamente: “Fenômeno acústico inexplicável. Possível manifestação de crença local. Ou…” — não conseguiu terminar. Uma segunda casca — dessa vez de coité — veio voando e acertou-lhe as costas.
— Corre, doutô! — gritou Zezeca, já desembestado pelo mato.
E foi cada um pra um lado. Januário com o fraque rasgado, o alforge batendo no ombro, os óculos quase caindo do nariz; Dona Mundica segurando o terço numa mão e a saia na outra; e Zezeca, que tropeçava mais do que corria, soltando gargalhadas que não denunciavam se ele tinha mais medo ou mais gosto pela confusão.
Só lá atrás, no alto da árvore, ouviu-se, sumindo com o vento:
— Moquém de véio num segura bugio sabido, não… ô raça besta, siô!
O sol já se inclinava pro lado de lá do morro quando Januário Monteiro, moço da corte, bacharel, cambaleando, arrastou-se de volta ao terreiro da casa-grande. O fraque parecia ter lutado com onça: rasgado nos ombros, sujo de barro, folhas grudadas por todo lado. O alforge pendia de uma alça só, e seus óculos, tortos no rosto, denunciavam que aquele não fora, nem de longe, um passeio acadêmico.
Zezeca veio logo atrás, limpando o suor com a manga da camisa e segurando o riso como quem segura xixi de menino na porta do banheiro. Dona Mundica, mais pra brava que pra assustada, vinha rezando baixinho, com o rosário de contas pretas escorrendo ligeiro pelos dedos e a cara de quem não ia se meter em outra dessas nem se pagassem.
Na varanda, o Barão do Sumidouro já os aguardava, recostado na cadeira de palhinha, balançando devagar e mascando fumo, cercado de duas escravinhas. Quando viu o estado de Januário, deu uma cuspida pro lado, ajeitou o chapéu e soltou, sem sequer disfarçar o sorriso torto no canto da boca:
— Uai… parece que a pesquisa do dotô rendeu, não foi?
Januário largou-se no banco mais próximo, ajeitou os óculos com ar de desgraça e respirou fundo. Puxou do caderninho — agora todo amassado, com as folhas meio arrancadas —, folheou, ajeitou a pena e, após alguns segundos em silêncio, rabiscou com mão trêmula:
“Constato, na presente data, que há, nas regiões interioranas do Império, fenômenos culturais cuja essência escapa à lógica cartesiana, situando-se na tênue linha entre o crível e o mítico…”
Fez uma pausa. Suspirou. Olhou pros lados. Zezeca acendia uma palhinha como quem nada tinha a ver com aquilo. Dona Mundica, de braços cruzados, olhava pro chão, batendo o pé.
Então, riscando a linha que começara, escreveu de novo:
“Ou, simplesmente, que nesse sertão danado de Deus… o matuto é mais sabido que muito letrado da Corte.”
O barão soltou uma gargalhada tão escandalosa que até o cachorro da varanda se assustou. Bateu a mão na barriga e, piscando pro viajante, arrematou:
— Pois então, dotô… O senhor veio buscar verdade… mas aqui, verdade e causo dá no mesmo. Quem sabe, acredita. Quem não sabe… aprende na marra.
Januário, ajeitando os óculos, tentou recompor um fiapo de dignidade, pigarreou e, como quem faz discurso, declarou:
— Eu… eu honestamente não sei se fui enganado, se fui testemunha de um fenômeno etnográfico singular ou se, simplesmente, entrei pro rol dos trouxas que o mato carrega no bico.
Zezeca, que até então se segurava, explodiu em riso, quase se engasgando no próprio assobio.
— Só sei de uma coisa, seu dotô… — disse, batendo-lhe o ombro com a mão calejada —… Bugio sabido… moquém não segura!
E todos riram. Riram largo, riram alto, riram até a barriga doer, porque no sertão, no fundo, o que vale mesmo é isso: a prosa bem fiada, a vida bem vivida e a certeza de que, no final das contas, a dúvida é mais divertida que a resposta.
E assim se deu o caso — ou o causo — do Bugio do Capão das Almas, que, até hoje, ninguém sabe se era bicho, alma penada, espírito zombeteiro ou só a mais pura, legítima e bem tramada esperteza de quem aprendeu, no meio da mata, que mentira bem contada vira verdade… se tiver quem acredite.
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Daniel Marchi é autor de A Verdade nos Seres, livro de poemas que pode ser adquirido diretamente através do e-mail danielmarchiadv@gmail.com