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A frasezinha

O dia que o gato na tuba do Agenor salvou a cidade de uma tentação maléfica

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

Era uma frasezinha musical, pequeno trecho de ária, que se prolongava no ar, levada pela brisa. Nascera talvez de um violino, quem sabe de um piano, provavelmente da união dos dois instrumentos, em algum sarau; mas desprezara suas origens e contentava-se em seguir com o vento. Não pertencia a uma peça de vanguarda, tampouco a uma composição tradicional. Era um fraseado musical comum, nem sequer era belo, no máximo harmonioso. Mas possuía uma característica especial: era absolutamente viciante.

As notas encadeadas voavam em meio à tarde que caía, indiferentes às pessoas que, ocupadas com seus afazeres, mostravam-se igualmente alheias a elas. A certa altura, porém, o vento parou de soprar, o pequeno trecho musical foi descendo, aproximando-se da cidade, até ser ouvido por duas irmãs, de 10 e 11 anos, que brincavam no quintal da casa. Ao escutá-lo, as duas se esqueceram das brincadeiras, se esqueceram dos pais, se esqueceram de tudo; a única coisa que importava era cantarolar, com suas vozes esganiçadas de criança, a passagem.

As vítimas seguintes foram os pais, depois os vizinhos mais próximos, em seguida a maioria dos moradores do bairro; quem morava em apartamento escapou, mas por pouco tempo. O contágio avançou como bola de neve, nas vozes de milhares de pessoas que entoavam a pequena frase musical ou tentavam executá-la em algum instrumento. Toda essa gente se esquecia dos filhos, dos esposos, dos amantes, das obrigações e dos prazeres; a única coisa que importava era cantarolar, mesmo desafinado, a passagem.

Entre os poucos do bairro que escaparam à sedução viciante do fraseado lírico, estava um senhor idoso, seu Agenor, ex-tocador de tuba na banda do Corpo de Bombeiros local. Escapou por seu amor ao instrumento que por tanto tempo tocara, e que manipulava carinhosamente, concentrando nele toda a sua atenção, no momento em que a as notas produziam sua devastação; mais ainda, escapou porque estava perdendo a audição. Na verdade, já estava surdo como uma porta – mas não admitia isso para ninguém, muito menos para si mesmo.

Talvez por o vento haver novamente diminuído, talvez por sentir-se ultrajada, ao ver alguém resistir a sua sedução, novo Odisseu a escapar, sabe-se lá como, do canto de sereia, a pequena frase musical foi descendo, aproximando-se do quintal onde estavam seu Agenor e sua tuba.

Mas, antes que a perigosa passagem da ária o atingisse, o velho começou a tocar.

Foi um desastre. A surdez não lhe permitia escutar o que tocava, a idade havia diminuído seu fôlego e a artrite, deformado seus dedos, de modo que, num primeiro momento, só conseguiu arrancar ruídos grotescos do instrumento. Isso vinha acontecendo com frequência, a ponto de tornar uma explicação verossímil a velha expressão “tem gato na tuba”. Os sons tinham, porém, uma característica especial: eram absolutamente antiviciantes, quem os escutava estremecia de desgosto e fugia deles como o diabo foge da cruz, para não ouvi-los nunca mais.

Percebendo que seu desempenho, naquele fim de tarde, estava pior que o costumeiro, seu Agenor reuniu as poucas forças que lhe restavam e soprou com tudo. Foi um som forte e grave, pavoroso, que ecoou pelo bairro, ferindo os tímpanos dos infelizes que o ouviam. Só que, ao ganhar o espaço, o petardo musical atingiu em cheio a frasezinha que se aproximava, desintegrando-a. No mesmo momento, as pessoas perderam a expressão de torpor de suas faces e sacudiram a cabeça, ainda um pouco aturdidas, como quem acaba de acordar de um sonho mau.

E a vida recomeçou, monótona e apaixonante, com suas dores e alegrias, multifacetada.

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