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Criatividade adquirida

Com mais neurônios e naturalidade, ontem gostoso era melhor que o hoje raivoso

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Autor/Imagem:
Wenceslau Araújo - Foto de Arquivo

Assim como todos os viventes da minha geração, eu não dispunha de computador, laptop, celular, fogão de seis bocas, apartamento com suíte ou lavabo, três ou mais televisões em casa, gás encanado, BYD, Lambe Rola, muito menos Viagra ou Tadalafila, remedinhos usados hoje para animar os rápidos e engomados festejos atualmente denominados de rala e rola. Naquele tempo o vuco vuco não tinha apelidos rocambolescamente indecentes. No máximo, chibata na Catarina. Sem o aperitivo químico, a saída era a velha mistura da catuaba com álcool 70 graus.

Longe de ser uma poção mágica, a beberagem funcionava até a página 2. A partir da página 3, só com a presença da benzedeira do plantão dominical ou após incorporar o solícito parceiro Caboclo Metinela. Todo esse ritual tinha razão de ser. Afinal, por falta de liberdade, espaço e tempo, a saliência conjugal comumente era praticada em dias especiais ou comemorativos. Como disse, o mais usual eram as jovens tardes de domingo, obviamente após o futebol do Maracanã, na época o maior estádio do mundo.

Complicadas, mas inesquecíveis, as datas eram casadas com o pagamento mensal, ocasião em que os meninos recebiam mesada em dobro, de modo a dobrar a permanência no parque de diversões do bairro. Aí o parquinho caseiro só parava de funcionar quando a mulher barbada pedia help. Aliás, Help, sucesso épico dos Beatles, era o fundo musical preferido dos casais sem televisão. O radinho de pilha bastava para encantar o enrosco. A casa caía, mas a jurupoca não parava de piar. Era o ontem gostoso engolindo o hoje raivoso.

Associada à criatividade adquirida, a inteligência natural de incalculáveis neurônios contava mais do que cinco mil gigabytes no momento da explosão exuberante, deleitosa e entusiasmada do potro e da insubstituível potranca. Era algo como o fim do mundo em 180 segundos. Nada que lembrasse as joviais e unilaterais sapecadas via internet de hoje. Ao som dos Fevers e de Renato e Seus Blue Caps, os da minha época só labutavam. Ninguém “celibatava”. Nem mesmo os padres de periferia.

Não tenho nada com isso, mas vale registrar que os da Zona Sul tinham gostos tresloucadamente mais duvidosos. E daí? Era o período em que tudo podia, menos homem dançar com homem e mulher com mulher. Essa era a máxima do imorrível Tim Maia. Quem não a seguisse, inquestionavelmente mijava fora da bacia. Realmente estávamos bem distantes das atuais modernidades. Entretanto, vivemos como se vive hoje. Talvez vivêssemos melhor, pois tudo que fazíamos era às claras. Até aquele antigo golpe foi da noite para o dia.

Para nós, o futuro sempre esteve distante. Agora que ele chegou, prefiro distância dele, principalmente dos que querem dele se apossar. Quero de volta o tempo em que eu apenas brincava de pensar no futuro. Nessa época sem fitas magnéticas ou redes sociais, mais importante do que matar ou morrer por política eram as jovens tardes de domingo, nas quais a gente gemia sem sentir dor. Foi nesse período que meus contemporâneos começaram a descobrir as modernidades de hoje. Nada contra o novo, mas, se me derem oportunidade de outra vida humana, quero voltar exatamente como agora. Nem mais, nem menos.

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Wenceslau Araújo é Editor-Chefe de Notibras

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