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Enfeite de garagem

Quando a Variant que sonha não tem preço

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Autor/Imagem:
Daniel Marchi - Foto Produção de Francisco Filipino

Manhã fria de junho, antes das oito horas da manhã, encontro-me em solidão criativa, tão necessária de tempos em tempos, enquanto degusto um misto de mortadela e bebo um chocolate quente na padaria do bairro. Daqui onde me assentei, vejo meu carro. É uma singela Volkswagen Variant, ano 1974, na cor bege-alabastro.

Sim, amigos, uma Variant de 51 anos, que muito me alegra. Um carro antigo é, sobretudo, o testemunho da história. Um deleite estético.

A Variant é meu carro da vez. Tenho-a usado bastante. Para tudo. Trabalho, curtas viagens, uns passeios nos fins de semana com meu filho.

Aproxima-se um homem de mim e pergunta:

– É sua?

Respondo afirmativamente.

– Por quanto o senhor vende?

– Não vendo.

– Dou vinte mil.

– Não, obrigado.

– Dou trinta.

– Não vendo.

– Mas quanto ela vale?

Raciocino por alguns instantes. E minha resposta não pode ser outra, senão um sincero:

– Não faço ideia. Não penso em vender, realmente não sei quanto vale. Talvez mais ou menos do que tenha pago quando a comprei, mas, sei lá… Não vem ao caso.

E continuo pensando no assunto. Pouco me importa, ademais, o quanto valha. O importante é o que representa para mim. Representa um sonho de criança, de um garoto que sempre foi apaixonado por antigos modelos da VW (que, quando eu era garoto, nem eram tão antigos assim), e hoje pode se dar ao luxo eventual de circular por aí com um Fusquinha, uma Brasília, uma útil Kombi, ou a Variant bege, cor de sorvete de creme, meu preferido desde que abandonei o de morango.

Afinal, o que é a vida, senão os momentos de felicidade autêntica e simples entre o momento em que nascemos e aquele em que nos deixam, geralmente muito a contragosto, numa cama de pedra?

Por que complicar os dias entre esses dois eventos colocando preço em algo capaz de proporcionar momentos especiais?

Lembro uma ocasião em que, estando com um jovem colega advogado fazendo um lanche no Leblon, bairro do Rio de Janeiro, após atendermos, em domicílio, a uma cliente em comum, senhora idosa e com muitas dificuldades de locomoção, ele me perguntava:

– O que acha de eu comprar um carro importado? Talvez uma Mercedes Benz, ou uma BMW, ainda que com alguns anos de uso, para impressionar os clientes?

Teria mil reflexões para fazer ao responder a essa pergunta. Mas resumi a ideia dizendo a ele que devia fazer o que mais o agradasse e o deixasse à vontade. Não estava, e não estou, com muita disposição para dialogar com quem faz perguntas já esperando, de antemão, apenas a resposta que ressoa em seu pensamento, sem qualquer traço de discordância.

Será que algum cliente deixaria de me escolher como advogado se me visse a bordo da Variant? Talvez, pensando assim, nem tenha sido uma boa ideia começar esta crônica evocando a velha desbravadora de estradas que hoje me serve.

Ela não conta, mas deve ter muita história. Será que foi o meio de locomoção de uma família só ou de várias? De uma pessoa solitária ou de alguém com muita companhia?

Quem sabe tenha carregado pessoas em horas felizes?

Terá proporcionado o encontro de novas paisagens, novas ideias e aprendizados ou circulou apenas no espaço limitado de alguma cidade ou bairro?

Foi um meio de transporte ou somente enfeite de garagem?

Não saberei nunca. Esses testemunhos não ficaram gravados na sua lataria, nos pneus de perfil estreito, nos bancos macios, no arco de seu volante preto.

Mas serei participante de uma história escrita por caminhos a trilhar daqui para a frente, no sorriso autêntico de meu menino quando digo que vamos passear de Variant, na fala do meu velho pai que diz “como está boa!”, nos sorrisos e comentários que fazem transeuntes anônimos pelas ruas em que passamos, e mesmo no brilho sereno dos faróis que, enquanto escrevo estas linhas, dormem na garagem, talvez sonhando com poemas ainda por escrever, como aquele que dediquei ao Fusca amarelo e que se encontra no meu livro “A verdade nos seres”.

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Daniel Marchi é autor de A Verdade nos Seres, livro de poemas que pode ser adquirido diretamente através do e-mail danielmarchiadv@gmail.com

 

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