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O bruxo

Joaquim bem que tentou, mas virou prato preferencial de matilha especial

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

Ele se considerava o bambambã das artes herméticas. Não, da bruxaria mesmo.

Seu nome era Joaquim. Na adolescência, esbarrou com o Livro de São Cipriano e sentiu que aquele era o seu caminho. Ia se tornar um bruxo poderoso.

Um bruxo, não um mago. Nutria um solene desprezo por figuras como Helena Blavatsky, Alesteir Crowley e outros ocultistas que se esforçaram por dar um novo verniz à magia, dando-lhes ares de modernidade – isso em termos, pois a Blavatsky viveu no século XIX, enquanto Crowley nasceu em 1875 e morreu em 1947. Joaquim ria de seus esforços: como se a magia, a bruxaria e outros saberes herméticos precisassem de atualização! Ele se considerava um bruxo raiz, fundamentalista, o Livro de São Cipriano era sua Bíblia profana.

Em uma noite de sexta-feira, como sempre fazia, iniciou seus preparativos. Acendeu muitas velas para iluminar o apartamentinho em que morava sozinho (era solteiro), apagou as luzes elétricas e abriu o texto que havia estudado com afinco, um encantamento para transformar ferro em ouro. E, como sempre fazia, começou a adaptar.

Primeiro, o local. Ele devia dirigir-se a uma elevação “gelada, varrida pelos ventos”, mas fazia um frio dos diabos, decidiu ficar mesmo no aconchego de seu lar. Segundo, o próprio ritual. Devia oferecer um animal em sacrifício aos deuses do submundo, mas gostava de bichos, nunca os abateria. Então matou um mosquitinho, sentindo toneladas de culpa. Implorou às entidades que entendessem. E, afinal, disse a si mesmo, o que vale é a intenção.

Além disso, precisava assegurar que os seres que reverenciava recebessem no mínimo um quilo de carne sangrenta, mas era vegetariano, não tocava em cadáver de bicho, então substituiu essa parte do ritual pela oferenda de 15 ovos cozidos. “Em termos de valor proteico, acho que equivale”, pensou. “E, mais uma vez, o importante é a intenção”.

Por último, deveria berrar, com toda a força de seus pulmões: “Ó senhores do submundo, transformai esses objetos de vil metal em nobre ouro!” Mas não podia dar berros em seu apartamento, já era quase meia-noite, os vizinhos iriam reclamar, ele já era malvisto, considerado meio louco, não dava. Então disse baixinho e bem rápido, emendando as palavras, a frase que desencadearia a transformação.

– ósenhoresdosubmundo,transformaiessesobjetosdevilmetalemnobre ouro!

Depois disso, esperou. Passou meia hora, uma hora, e nada. Afinal desistiu, deu de ombros e apagou as velas. Mas não ficou decepcionado, seus repetidos fracassos nunca o abalavam por muito tempo.

– Acho que esta noite os astros não favoreciam a transformação da matéria – disse a si mesmo. – Tentarei semana que vem, essa bruxaria é considerada infalível.

Enquanto isso, no submundo, três entidades grotescas riam de rolar no chão.

– O imbecil do Joaquim fracassou de novo! – disse um monstrengo.

– Também, oferecer ovos cozidos em lugar de carne pingando sangue… – observou o segundo.

– Qualquer noite dessas garanto o êxito de suas bruxarias, só pra ver a cara dele. Vai se mijar de emoção – falou o terceiro.

– Ou de medo – cortou o primeiro a ter falado. – Basta que mandemos como espíritos auxiliares, em lugar dos bichanos que ele acha tão fofos, um ou dois de nossos cachorrinhos.

– Então fechou. Na próxima vez que ousar nos oferecer ovos cozidos em lugar de carne crua, vai encarar nossa matilha – disse o terceiro senhor do submundo.

Nos porões, criaturas de aparência indescritível, vagamente canina, uivaram e babaram em sangrenta antecipação.

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