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Pinturas

O pintor que gostava de brincar com palavras

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Autor/Imagem:
Cadu Matos - Foto Francisco Filipino

“Era antes de tudo um homem que no fundo só verdadeiramente amava a certas imagens e (como uma miniatura no fundo de um cofre) o prazer de as compor e de pintar com palavras.”

Marcel Proust, À sombra das raparigas em flor, livro 2 de Em busca do tempo perdido.

Rodrigo leu essa passagem de Proust e se identificou a ela. Afinal, era escritor, e sempre gostara do que chamava “brincar com palavras”. Chegara mesmo a parafrasear o início do poema O lutador, de um de seus gurus literários, Drummond, que ensina: “Lutar com palavras é a luta mais vã. Enquanto lutamos, mal rompe a manhã”. Por sua vez, a produção intertextual de Rodrigo foi: “Brincar com palavras é coisa louçã. Brincando, brincando, irrompe a manhã”. Postou a quadrinha em suas redes sociais – e depois teve um trabalho dos diabos para explicar urbi et orbi que uma coisa louçã significa algo belo, cheio de frescor e brilho.

O trecho de Proust o fez redefinir sua própria criação. Brincar sugeria algo espontâneo, de que todos são capazes; já o termo pintar sugeria um esforço prévio da imaginação e um mínimo de concentração e talento do artista, mesmo que amador. Com isso, passou a pensar em si mesmo como um pintor com palavras.

Pena que Rodrigo não se deteve na continuidade do texto proustiano: se o amante de imagens “tivesse de defender-se perante um tribunal, ele involuntariamente escolheria as palavras não em vista do efeito que pudessem provocar no juiz, mas em vista de imagens que o juiz por certo não perceberia”. Ou seja, pintar com palavras pode ser a própria vida de um escritor, um modo de viver – e, como ensinou outro de seus gurus, Guimarães Rosa, viver é muito perigoso.

Para bem e para mal, Rodrigo teve a comprovação disso noites depois, quando estava em uma recepção informal na casa de um amigo. De repente, viu uma mulher linda, deslumbrante. Enfeitiçado, aproximou-se, montou o cavalete imaginário, pegou sua paleta imaginária e começou a pintar. Reconhecia que era muita areia pro seu caminhãozinho, mulher demais para ele, que era baixinho e feio pra dedéu; sentia-se, porém, uma versão atual do poeta francês Cyrano de Bergerac, cujo enorme nariz não o impedia de criar versos magníficos. Decidiu-se, iria seduzi-la com palavras.

– Desculpe, a senhorita nasceu em Chipre?

– Chipre? Nem sei onde fica – e riu com uma voz deliciosa. – Sou paulista, nasci na cidade de Tatuir.

Tadinha da diva! Sotaque caipira na última, tacou um r no final de Tatuí. Rodrigo não deu a mínima. Com aquele rosto angelical, aquele corpo escultural, ela podia ser fanha que ele se lançaria a seus pés, em adoração.

– Segundo alguns mitos gregos, a deusa Afrodite nasceu da espuma do mar, na ilha de Chipre. A senhorita parece-me a encarnação mesma da divindade do Amor e da Beleza (Afrodite era também a padroeira da sexualidade, mas isso o pintor com palavras preferiu omitir, reservando-o para um momento mais íntimo).

A jovem sorriu, deliciada.

– Você é muito gentil. E usa palavras tão bonitas! Tão diferente dos carinhas que conheço…

Ele foi em frente, criando delicadas pinturas, poemas em prosa erigidos pela conjunção de beleza (a dela) e talento (o dele). A jovem já estava quase entregue, inclinando-se em sua direção, os olhos semicerrados e os lábios semiabertos, quase soaram palavras ameaçadoras:

– Bete, o que significa isso? Quem é esse tampinha?

Quem falava era um armário, um sujeito enorme e musculoso, que o olhava com hostilidade. Rodrigo tremeu nas bases mas conseguiu responder, quase de bate-pronto.

– Tampinha de frasco dos melhores remédios e dos piores venenos, depende da dosagem e do manipulador – e prosseguiu rápido, para que o tema incômodo de sua baixa altitude não voltasse à baila:

– Tem tido notícias de Dan Fossey? – e, diante da expressão atônita do macho-alfa, prosseguiu, com uma ironia cyranesca. – Creio que ela o conheceu na região serrana, não sei se do Rio de Janeiro, mas com certeza em uma serra.

Era uma maneira irônica de chamar de gorila o rival avantajado. Dan Fossey, assassinada a mando de caçadores ilegais morta em 1985, foi a naturalista que escreveu acerca de seu contato com os gorilas-das-montanhas no Congo e em Ruanda no livro Nas montanhas dos gorilas.

À semelhança do juiz mencionado por Proust, o gorilão não entendeu pissirongas, não conhecia nem sequer o filme do mesmo nome, em que Sigourney Weaver interpreta a naturalista. Rodrigo prosseguiu, impávido, ainda mais brilhante pela adrenalina do perigo próximo, como um toureiro que faz uma enorme besta cada vez mais exausta mover-se a seu redor, antes de desferir a estocada final.

Antes que esta viesse, porém, a moçoila jogou tudo no ventilador:

– Você é um grosso, um imbecil! – exclamou para o armário-gorila. – Nem consegue responder ao meu poeta, entender o que ele diz. Não sou mais sua namorada, vou ficar com ele!

– Ah é? – e mandou uma porrada. Foi o bastante.

Braços de poeta ou de pintor com palavras não amortecem bem socos, e Rodrigo nem tentou erguê-los. Desabou, atingido por um gancho no queixo. Quando acordou, uns 15 minutos depois, o macho-alfa tinha fugido, temoroso de tê-lo ferido gravemente ou coisa pior, e Bete acariciava seu rosto.

A semana seguinte foi a mais plena da vida de Rodrigo. A corporificação de Afrodite ficou a seu lado, cuidando dele, solícita, e dormindo em seus braços. Só que palavras podem seduzir, porém não manter uma relação, a química dos dois na cama era uma pobreza, e sete dias depois ela veio com aquele papinho bem conhecido de “não é você, sou eu”.

Rodrigo não ligou muito, conhecia seus limites. Mas passou a conhecer igualmente seus poderes de sedução. Cyrano redivivo, seguiu pela estrada da vida de mulher em mulher, a paleta a tiracolo, o pincel sempre pronto para o que der e vier e, principalmente, para quem vier e der.

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