O LADO B DA LITERATURA
Nos 82 anos do Condé, quem ganha o presente são os leitores
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De repente, sem aviso prévio, chego aos 82 anos. Não me impressionaram os 80, nem os 81. Mas os 82 são um espanto. Porque, em recente conversa com minhas irmãs, notamos que nenhum de nossos maiores chegou a esta marca. Senti, naquele momento, uma estranha mistura de vitória e solidão. É como se eu estivesse caminhando, agora quase sozinho, por um campo onde a maioria dos marcos familiares já ficaram para trás.
Em vão, meus companheiros de Notibras pediram, por semanas, uma foto recente minha para ilustrar esta coluna de aniversário. Mas, ainda que vivamos em tempos de exposição abundante e selfies até no velório, continuo, como diz o poeta-maior Daniel Marchi, “raro nos retratos”. Talvez porque fotografias prendam, congelem… e eu nunca gostei de ficar parado.
Revendo meu material, para não decepcionar os colegas, resolvi ilustrar estas notas com a imagem de gente querida que pertence a uma raça extinta, graças à qual eu cheguei até aqui.
Eu também pertenço a esta raça extinta e me encontro cada vez mais próximo do fim. É perfeitamente natural.

Ainda outro dia, o Edu Martínez me dizia que, brincando e rindo, eu ainda tinha muito mais de dez anos pela frente. Eu duvidei do meu jovem contista, mas retruquei dizendo que meus dedos, malhados e fortalecidos nas teclas de antigas Olivetti Lettera 32, ainda serão capazes de muito digitar no teclado macio dos computadores de hoje. Enquanto a mente não estiver obnubilada, seguirei fazendo o que sempre fiz, desde os 16 anos de idade.
Devo lembrar, primeiro, meu pai, Altair Condé, filho de Alcyr e Rita de Cássia, taxista, comerciante e dono de cinema, nascido no longínquo ano de 1912, fotografado comigo no colo em algum dia de 1943, na minha cidade natal.
Depois, minha mãe, Dalila Santo Condé, a italianinha de Gênova, onde nasceu em 1917, filha de Francisco e Luíza, que fez meu pai se apaixonar instantaneamente numa tarde, quando a viu sentada num banco de praça. Como era linda minha mãe. Eles foram essenciais em minha vida e são até hoje, pois, ao partirem, cada um na sua vez, tiveram a bondade de me deixar três irmãs mais novas, Rita, Alba e Vânia, que são meu tesouro e me deram ótimos sobrinhos e sobrinhos-netos, com os quais me realizei como pai.
Lembro de meu pai já velhinho, na porta de nossa antiga casa, viúvo, me dizendo para sempre ficar próximo dos meus, e cuidar de minhas irmãs – foi o que fiz e me orgulho disso.
Outro tesouro de minha vida, verdadeiro poema em forma de gente, é Evanir, minha alma-gêmea, que me atura há quase 50 anos. Para ela, deve ser desafiador passar a meu lado todo esse tempo. Mas é ela, moderna, dinâmica e vigorosa, que dirige o mundo. Eu sou apenas um humilde fâmulo desta verdadeira força da natureza a quem, grato, olho todas as manhãs e venero desde a hora do café até a hora do beijo de boa noite. Todos fizeram prognósticos desfavoráveis à nossa união.

Eu, um solteirão inveterado, mais velho, de temperamento difícil e boêmio. Ela, jovem estudante universitária, que procurava melhorar de vida para romper uma barreira de pobreza aguda. Casamos em 1977, contra todas as recomendações.
Poucas uniões deram tão certo e, apesar de não havermos realizado o sonho de ter filhos nossos, seguimos, como eu disse, tios e tios-avós muito felizes.
A vida não foi fácil, e nem deveria ser.
Comecei aos 16 anos escrevendo colunas na gazeta da minha terra. Já cobri tudo: eleição, enchente, greve, escândalo, carnaval, enterro, inauguração de estrada, e até jogo da terceira divisão. Trabalhei nas maiores redações do país e nos menores porões dos jornais alternativos durante o regime de exceção. Vi a censura cortar palavras com lápis azul. Vi colegas serem presos. Vi outros venderem a alma. Eu sobrevivi. Talvez por fé, talvez por sorte, talvez por insistência.

Nunca me achei importante. O jornalista, repito sempre, não deve ser o protagonista. A estrela são os fatos. A pauta é que importa. Quando o ego do repórter cresce mais que o conteúdo da matéria, algo se perde. Sempre acreditei nisso. E talvez por isso, aos 82 anos, ainda me emocione ao ver minha assinatura no final de um texto.
Os fatos que mudam e movem o mundo a nossa volta, por isso não me importo, como nunca me importei, em me alçar num patamar mais relevante do que aquilo que noticio.
Tenho seguido desta forma a minha vida toda, e, enquanto ela quiser e me der força, pretendo contar com o interesse dos leitores.
Enquanto os dedos puderem digitar e os olhos enxergarem a beleza da dúvida, seguirei escrevendo. Porque, no fim das contas, viver é isso: traduzir a complexidade da vida em palavras simples. E, se eu puder fazer isso até meu último suspiro, serei grato.
Se pensar é existir, como disse Descartes, então que nunca me falte o pensamento.
Porque eu, enfim, ainda estou aqui.
…………………….
Cassiano Condé, 82, gaúcho, deixou de teclar reportagens nas redações por onde passou. Agora finca os pés nas areias da Praia do Cassino, em Rio Grande, onde extrai pérolas que se transformam em crônicas.