Tédio
Geraldo, aposentado, foi despertado da monotonia por rosnados e gemidos de dor
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Geraldo estava morrendo de tédio. Sentia-se um estranho numa terra estranha, um solitário num deserto, um homem entediado num mundo tedioso.
Em parte era culpa sua, em parte, das circunstâncias. Estava aposentado havia 6 meses, e perdera o contato com os colegas – que jamais haviam sido amigos de verdade. Estava ficando surdo, o que diminuiu o prazer que a música antes lhe proporcionava. Gostava de ler, mas não tinha muito dinheiro para comprar livros novos. Não participava de redes sociais, sentia-se meio esquisito interagindo com desconhecidos. Assim, passava seus dias diante da TV, sem prestar atenção no que via.
De repente, rosnados e gemidos de dor vieram despertá-lo de sua monotonia. Correu para o porão e viu o dragão e a mantícora engalfinhados numa luta feroz. Ícor – a substância que dá ao sangue dos deuses e dos animais mágicos uma coloração dourada – escorria de suas feridas. Geraldo transfigurou-se, pareceu aumentar de estatura, murmurou palavras misteriosas enquanto estendia as mãos para as duas feras – e estas se transformaram em pintinhos.
– Agora eles podem trocar bicadinhas até cansar – disse em voz alta para si mesmo, com um risinho. Depois suspirou de prazer, agradecido aos deuses por haver acontecido algo fora da rotina em sua vida. Mas sabia que, no máximo em 24 horas, teria de devolvê-los à forma original. Havia aprendido pelo método mais doloroso. Tentara conservar uma sereia em forma semi-humana, para namorar repetidas vezes com ela, e a peixinha havia morrido com dores lancinantes. O livro o castigara com feridas fundas, que ainda lhe causavam arrepios, para que aprendesse a respeitar o prazo estipulado para a metamorfose.
Subiu a escada e, na sala, colocou em volta do pescoço um colar feito de alho. Não estava a fim de brincar com o vampiro, que se escondia num casarão abandonado vizinho a sua casa e quase todas as noites tentava sugar-lhe o sangue. Dava um trabalho dos diabos empurrar o morceguinho, tomando muito cuidado para não machucá-lo – o coitado do morto-vivo era fraco pra dedéu –, pegar uma estaca de madeira e fingir que ia terminar com ele. O jogo terminava sempre com o nosferatu tupiniquim fugindo apavorado, dando uivos de medo, para se deter diante da casa, de onde voltava seus olhos vermelhos para ele e implorava, em silêncio, por um pouco de sangue, só uns golinhos…
Por vezes Geraldo pensava em atender à súplica. Mas sabia que o vampiro não se contentaria com alguns jorros e talvez ele tivesse de enfrentá-lode verdade. Aí perigava matar o incompetente aprendiz de drácula, e seu mundo ficaria ainda mais pobre.
Novo suspiro, agora de resignação, e lembrou pela enésima vez como tudo começara. Como achara, num sebo, um livro antigo intitulado O livro dos seres mágicos, com o subtítulo – Monstros. Ficou interessado, comprou-o, levou-o para casa, começou a folheá-lo para passar o tempo – e sentiu garras cravarem-se em seus braços.
Não sentiu apenas, visualizou unhas compridas em mãos escamosas o machucarem até tirar sangue (vermelho, humano; não o ícor dourado dos deuses, seres mágicos e monstros mitológicos). Nesse momento, uma voz falou com ele, telepaticamente:
– Foste escolhido, mortal. Estude o livro com toda a atenção, ou sofrerás.
Geraldo obedeceu. Nas raras vezes em que tentou folhear o volume, adiantando-se ao tema em estudo, recebera arranhões que o fizeram gemer de dor e deixaram seus braços em carne viva. Cinco meses depois, estava coberto de cicatrizes dos ombros à ponta dos dedos, em ambos os braços, mas havia assimilado os ensinamentos herméticos. Era graças a eles que podia dominar sereias, dragões, mantícoras, vampiros e outros seres mágicos ou sobrenaturais.
Pela enésima vez, Geraldo pensou em sua situação. Tornara-se um mago poderoso, mas não havia ninguém com quem partilhar seus conhecimentos, a quem ensinar ou de quem aprender. Vivia em uma atmosfera de tédio e solidão, e isso doía.
Nesse momento, uma coruja de grande porte, toda branca, entrou pela janela semiaberta da sala. Trazia uma carta no bico e, com uma espécie de reverência, depositou-a a seus pés. Nela estava escrito: “O(A) senhor(a) está convocado(a) – convocado(a), não convidado(a) – a participar do Curso de Magia. Nosso curso é ligado à EJAM, Educação de Jovens e Adultos em Magia, nada tão metido a besta quanto o Colégio Hogwarts, do xexelento do Harry Potter, mas vai ensiná-lo(a) a tacar fogo no parquinho. É melhor comparecer, ou vai ver o que é bom pra tosse!”
E concluía com a vibrante palavra de ordem: “Os magos acima de todos, a magia acima de tudo!”